quinta-feira, 28 de maio de 2020

O Adeus a Conceição Senna

A diretora, atirz e escritora, Conceição Senna, que partiu dia 27, aos 83 anos


LUTO Na partida da atriz, escritora e cineasta baiana, Conceição Senna, o cinema brasileiro perde o pioneirismo de uma das lutadoras pela afirmação da mulher nordestina no audiovisual 


Por João Paulo Barreto e Rafael Carvalho

Faleceu na quarta-feira, aos 83 anos, no Rio de Janeiro, a diretora, escritora e atriz baiana, Conceição Senna. Natural de Valente, Conceição teve papel importante na filmografia baiana, atuando em obras pilares como o censurado à época Caveira My Friend, de Álvaro Guimarães; O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha; o marco da ficção cientifica do baiana, Abrigo Nuclear, filme de Roberto Pires; Coronel Delmiro Gouveia, filme de Geraldo Sarno;  A Coleção Invisível, de Bernard Attal, além de Iracema – Uma Transa Amazônica, na qual atuou sob a batuta do companheiro de longa data, seu esposo, o também baiano Orlando Senna, que co-dirigiu o filme ao lado de Jorge Bodanzky.  

Como diretora, Conceição teve seu foco em documentários, tendo filmado três deles: Memórias de Sangue, de 1987, filme sobre a cidade de Canudos, local onde passou sua infância; Brilhante, documentário de 2006 sobre um revisitar ao município de Lençóis, local onde o diretor Orlando Senna filmou, em 1977, Diamante Bruto, longa que tinha José Wilker como protagonista. Em 2018, Conceição lançou o terceiro e último filme, Anjos de Ipanema,documentário sobre o movimento cultural em torno do píer de Ipanema, local de confluência de diversas personalidades da música, cinema teatro e literatura no Rio de Janeiro dos anos 1970.

Orlando e Conceição Senna em foto dos anos 1970

DOCUMENTÁRIO BIOGRÁFICO   

Lara Belov, que co-dirigiu ao lado de Jamile Fortunato o documentário O Amor Dentro da Câmera, fala sobre a perda de Conceição, cuja história e parceria ao lado de Orlando Senna se tornaram tema do longa ainda a ser lançado. “Já estamos na fase de finalização do filme, colocando os créditos. Eu conheci Conceição ainda na minha adolescência, quando fiz uma oficina de roteiro em Lençóis. Jamile fez uma oficina com Orlando. Começamos uma amizade que nos ligou muito. Fui estudar em Cuba, onde ela e Orlando viveram anos antes. Ela era apresentadora de um programa na TV cubana chamado Ventanas al Sul, que teve a maior audiência em Cuba nos anos 1980 e 1990”, pontua Lara.

A importância de Conceição Senna na valorização das mulheres dentro do audiovisual também é salientada por Lara. “Num momento em que era ainda mais difícil para as mulheres fazer a sua arte, seu trabalho, ela sempre lutou por fazer isso. Uma pessoa emotiva, que falava o que queria, que expressava seus sentimentos. Ela tinha uma sinceridade enorme. Conceição não teve filhos biológicos, mas teve muitos ‘filhos’ e ‘filhas’ por onde ela passou”, declara Lara Belov.

Conceição e a diretora Lara Belov durante gravações Foto: Jamile Fortunato

A produtora baiana, Solange Souza, da Araça Filmes, que produziu o documentário Brilhante, 
também destaca a importância de Conceição, sua presença no audiovisual brasileiro e luta contra o preconceito a nordestinos e mulheres. “Para mim, ela foi mais que uma amiga. Foi uma irmã, uma mãe. Sempre dizia para gente que tínhamos que enfrentar esse preconceito isso com a cara e a coragem. Principalmente as mulheres. Sempre estava presente em negociações do audiovisual brasileiro. Como atriz, escritora, diretora e roteirista. No período em que Orlando foi secretário de Cultura, as reuniões sempre aconteciam em sua casa. Ela e Orlando foram importantes articuladores na Cultura do audiovisual”, afirma Solange.

Foto do acervo pessoal da produtora Solange Souza com Conceição 

Em 2018, por ocasião do Cine Ceará, A TARDE conversou com Conceição por telefone acerca de sua trajetória e sobre filme, Anjos de Ipanema, que seria exibido no festival. Sobre seus dois filmes anteriores, Conceição trouxe lembranças preciosas. “Quando Orlando esteve lá em Lençóis para filmar Diamante Bruto, a cidade estava desmoronando. Ele captou muito da beleza do lugar. O filme deu muita visibilidade a Lençóis. Tanto que, hoje, trata-se de um dos pólos turísticos principais do Brasil. Quando voltei lá para filmar Brilhante, eu quis abordar o mote do ‘pode um filme transformar uma cidade?’, uma vez que foi justamente isso que o trabalho de Orlando fez”, declarou a cineasta à época.

Com o último filme, Anjos de Ipanema, Conceição revisitou memórias afetivas de uma época intensa, quando viveu o movimento cultural e hippie na capital fluminense dos anos 1970, lugar onde viveu até os últimos dias. Na mesma conversa, ela me falou que havia encerrado sua contribuição cinematográfica com Anjos.  “Esse é o meu terceiro e último filme. Nos três, eu busquei de alguma forma abordar as transformações que passavam as cidades onde vivi, Canudos, Lençóis e Rio. Mas, sendo baiana, quis homenagear a Bahia presente no Rio, cidade que escolhi passar meus dias. Aqui tem o chamado ‘Quadrilátero Baiano de Ipanema’, quarteirão formado por ruas cujos nomes levam homenagens a heróis da História da Bahia e após homenagear Canudos e Lençóis nos meus dois primeiros filmes, foquei no Rio”, disse-me Conceição com empolgação naquele dia.

Honra de ter entrevistado Conceição durante Cine Ceará em 2018 Foto: Luiz Zanin

Tendo vivido os anos 1970 na capital fluminense em toda uma efervescência cultural que escapava do cabresto dos anos de chumbo, Conceição se recorda de uma resistência dentro da arte. “Foi uma época marcante culturalmente, onde as pessoas falavam muito de amor, paz, solidariedade, coisas em falta nos dias de hoje”, disse-me com certo pesar na voz, mas que não deixava seu sorriso fugir por inteiro.

Autora do romance autobiográfico A Menina, a guerra e as almas (que deve se tornar filme pelas mãos da diretora Manuela Dias), na mesma conversa, Conceição disse que planejava encerrar sua carreira como diretora para focar na literatura.

É dessa serenidade que vou me lembrar. 

*Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 29/05/2020


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