A oitava edição do já tradicional Cachoeira Doc, mostra de
documentários que acontece na cidade do recôncavo baiano, começa hoje e segue
até o próximo domingo, dia 10 de setembro. Trazendo uma leva de 65 produções
(cinco delas inéditas), entre curtas e longas metragens, o festival contará com
sessões gratuitas de mostras competitivas, retrospectivas, homenagens, colóquios,
oficinas, além de diversas outras atividades. Mais uma vez, o evento confirma
sua postura questionadora através de filmes que possuem uma reflexão social e
política, travando um diálogo direto com o espectador e estendendo esse mesmo
diálogo para além do cinema.
Desde seu longa de abertura, o impactante Quilombo Rio dos Macacos, do cineasta
baiano Josias Pires, que será exibido amanhã, terça, às 19h30, passando pelo
petardo dirigido por Marcelo Pedroso, Por
Trás da Linha de Escudos; Escolas em
Luta, de Eduardo Consonni, Rodrigo T. Marques e Tiago Tambelli, além de
curtas como Na Missão, com Kadu, de
Aiano Bemfica, Kadu Freitas e Pedro Maia de Brito, o Cachoeira Doc desse ano
buscou em sua seleção de filmes trazer ao público a imprescindível ação de não
passividade diante de um Estado tirânico e opressor.
“A História esta
sempre nos demandando uma reflexão instantânea e ao mesmo tempo uma ação. Essa
é uma consciência que a gente desenvolveu. E os filmes escolhidos dizem
respeito a essa consciência,” afirma a pesquisadora Amaranta Cesar, uma das
curadoras e coordenadora do evento. Através de obras que desafiam um
preconceito crítico e buscam enfrentar um déficit histórico aos cinemas
militantes, o festival traz mostras como a Cinemas
de Lutas, que, segundo a própria Amaranta, intenciona mostrar ao público um
tipo de cinema que diverge de padrões formais do fazer fílmico. Padrões nos
quais muitos dos trabalhos que estão sendo feitos não se encaixam. “No filme do
Josias Pires, por exemplo, temos imagens feitas por quilombolas que registram a
brutalidade das autoridades naquele lugar. São pessoas filmando com celular,
câmeras portáteis, mas que acreditam na força daquelas imagens. É preciso
entender de onde vem essa crença e dar lugar a elas. E nós, como realizadores,
curadores e críticos de cinema, precisamos acompanhar e rever nossos padrões
formais sob pena de apagar da História trabalhos importantíssimos ”,
complementa Amaranta.
O filme de Josias Pires representa muito bem esse formato de
cinema. O documentário abrange seis anos (de 2011 a 2017) da saga dos moradores
do Quilombo Rio dos Macacos, localizado na Região Metropolitana de Salvador, na
luta contra a ganância da Marinha do Brasil que, com truculência e brutalidade,
tenta desalojar diversas famílias que vivem há décadas no lugar. O cineasta e
sua equipe acompanharam audiências de representantes da comunidade com
autoridades da Marinha; registraram manifestações públicas de protesto pela
ação de despejo; conviveram no local, observando os meios rurais de sustento
dos quilombolas; trouxe falas de procuradores da República, deputados e senadores,
tudo reunido em mais de 150 horas de imagens brutas. Com a montagem de Cristina
Amaral, tal material resultou em 120 minutos angustiantes, mas, acima de tudo,
reveladores, de como a ação mesquinha e autoritária do Estado Brasileiro não
visa o bem estar de seu cidadão, mas, sim a cessão de direitos adquiridos.
“De
certo modo, o desenrolar do filme no período de 2011 a 2017 abrange exatamente
o período que nos leva à atual crise de identidade política que vivemos. Quilombo Rio dos Macacos é uma grande
metáfora do Brasil atual. Principalmente no momento em que o filme mostra a
aliança perversa do Estado com o Poder Judiciário,” explica o diretor Josias
Pires. O realizador se refere ao momento do longa em que, durante uma audiência
pública, uma procuradora da República se impressiona ao saber da ação
arbitrária e parcial de um juiz, que definiu ações sem consultar a comunidade,
agindo em prol unicamente da Marinha. “Curiosamente, vivemos no âmbito nacional
essa evidência de algo histórico: de que o judiciário no Brasil não é parcial,
que sempre teve um lado, que sempre teve partido. A justiça no Brasil tem
classe. E não é a dos menos privilegiados como os quilombolas,” completa Josias
Pires.
O saudoso Luiz Paulino em momento de reencontro |
Homenagem à Luiz
Paulino
Já estabelecida como parte importante do festival, a mostra Clássicos do Real relembra mestres do
cinema documental. Esse ano, o veterano cineasta Luiz Paulino dos Santos,
falecido em maio, será homenageado com a exibição de Índios Zoró: antes, agora e depois, último filme do diretor. O
longa, de 2016, mostra o retorno de Paulino ao local onde, há trinta anos,
filmou um curta sobre os costumes e práticas dos indígenas que dão título a este
que viria a se tornar seu último trabalho. Neste reencontro, o baiano nascido
no povoado de Altamira, traz ao público uma reflexão acerca da identidade
indígena, apresentando uma comunidade modificada pela presença perniciosa da
catequização cristã, pelo acesso dos nativos à bens de consumo e pela
tecnologia que os descaracterizou. Uma bela homenagem a Luiz Paulino, um dos
pilares do cinema baiano, o homem responsável pelo roteiro de Barravento e pela ascensão de Glauber
Rocha.
Colóquio Cinema,
Estética e Política
Reafirmando sua função de fomentador do pensamento
cinematográfico e de atividades educacionais no âmbito acadêmico da Sétima
Arte, o Cachoeira Doc traz para essa edição o VI Colóquio Cinema, Estética e
Política, que é organizado pelo Grupo Poéticas da Experiência, vinculado à
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Amaranta Cesar explica que “o
evento reúne os pesquisadores mais importantes e atuais do cinema e das artes
no Brasil. O grupo da UFMG nos convidou a abrigar o colóquio e a realizar a
edição 2017 junto com eles. Isso nos alegra muito, pois é um sinal de que o que
estamos fazendo está sendo ouvido fora daqui.” A coordenadora salienta que,
desde a sua criação, em 2010, a intenção do festival era de criar um pensamento
cinematográfico constante na então recém instalada Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia (UFRB). “O Cachoeira Doc foi pensado e construído dentro do
curso de cinema da UFRB. Durante os governos Lula, o projeto de interiorização
das universidades nos deu essa possibilidade. Com a criação do festival, a ideia
era fazer chegar a Cachoeira e àquele curso que estava nascendo, o pensamento e
os filmes que estavam sendo produzidos no Brasil. Além disso, trazer pessoas
para conversar com os alunos, para intensificar, ali, um lugar de encontro. Ver
esse convite do grupo de Minas Gerais me alegra muito, também, pois demonstra
que conseguimos, hoje, fazer o fluxo inverso,” completa.
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