quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Entrevista: Glory, de Kristina Grozeva e Petar Valchanov




Há em Glory, filme búlgaro dirigido por Kristina Grozeva e Petar Valchanov, uma desesperança que atinge o espectador em cheio. Tal desesperança é oriunda de um vilão que existe não somente no cinema, que perde sua importância assim que os créditos finais sobem na tela. Tal vilão acompanha o espectador após a sessão, lembrando-o de sua presença a cada momento da nossa rotina. No longa, o vilão em questão é o Estado. Seu poder em esmagar fracos é insano. Poucos sobrevivem a ele. Aqueles que tentam não se adequar à suas regras de oportunismo sofrem com seus duros golpes burocráticos.

Tal vilão atinge em cheio o nosso suposto herói, o humilde e honesto Tzanko Petrov, um funcionário da linha férrea que passa sua rotina fazendo reparos nos trilhos até o dia em que, durante uma de suas rondas, encontra e entrega às autoridades milhares de euros espalhados. Catapultado pela mídia oportunista para a posição de herói nacional, Tzanko, gago e introvertido, é levado para uma solenidade junto ao ministro dos Transportes, que lhe agraciará com um moderno relógio digital de presente e um título reconhecendo sua honestidade. O que ele não esperava era que perderia o seu atual relógio no processo e, ao tentar recuperá-lo, sua vida, pacata e regrada, se tornaria um caos.

“Toda a história de Tzanko nos ocorreu a partir de uma manchete de jornal, que falava sobre um relógio dado de presente a um homenageado, mas que, poucos dias depois havia dado defeito”, relembra o co-diretor Petar Valchanov. “Pensamos que somente naquela manchete, já havia uma história. A ideia de inserir a perda de valor sentimental de Tzanko foi o que nos ajudou a complementar o roteiro”, complementa Kristina Grozeva. 

No processo de criação de Glory, os roteirista personificam a presença esmagadora do Estado na figura da RP Julia Staykova, que tem na sua postura omissa e oportunista o modo claro de como o próprio ego suplanta qualquer moral e decência que ela venha a possuir perante o outro. “Algumas pessoas são prisioneiras deste ego. Elas simplesmente não conhecem outra maneira de levar a vida”, lamenta Petar.

Os cineastas durante o o festival de Locarno
Sobre essa construção brutal da realidade, os cineastas conversaram com A Tarde em entrevista exclusiva na qual fizeram questão de salientar para o público brasileiro que, apesar de abordar um tema sério, seu filme também garante boas risadas. 

Para isso, eu diria que os risos são um tanto trincados. Confira o papo!

Seu filme aborda o modo opressor como Estado pode inferir na vida das pessoas e como essa máquina é feita, também, por pessoas. Existe, ao meu ver, uma reflexão válida sobre o modo como o capitalismo pode agir nesta mesma opressão.

Curioso você citar o capitalismo. Nós achamos que nossa história lida com a relação entre o Estado e o individuo, independentemente do sistema econômico. Tudo o que fizemos foi personificar o Estado no personagem de Julia, o que nos ajudou a explorar aquele tipo de mentalidade: a sede pelo poder em paralelo a uma total rejeição da responsabilidade pelos próprios atos. Isso é uma das características que dá ao Estado sua má reputação junto às pessoas. Ao mesmo tempo, nós queríamos apontar o fato de que essa terrível máquina burocrática que pode destruir as pessoas é feita por humanos, cujas vidas são frágeis do mesmo modo e, talvez exatamente por isso, seja tão cheia de defeitos.

Tzanki e a (des)esperança de sua luta contra todo um sistema

Abordar pessoas comuns, trabalhadores de sol a sol, em situações que parecem tirá-los de usa rotina e colocá-los em situações de um perigo iminente é uma constante na abordagem de seus filmes, como A Lição, de 2014, e, agora, com Glory. Essa atração para temas palpáveis e reais é o que interessa principalmente a vocês como cineastas?

Com certeza. Nosso maior e mais irritante modo de criação vem da realidade na qual estamos inseridos. Foi por isso que decidimos fazer uma trilogia de filmes baseados em manchetes de jornal (NE.Trilogia iniciada em 2010 com o inédito no Brasil, Avariyno Katzane). Frequentemente nos deparamos com notícias cujas manchetes, com poucas palavras, contam uma história inteira. São notícias como “Professora assalta banco” (NE. Tema abordado em A Lição) ou “Herói nacional premiado com relógio defeituoso”. Nós só precisamos desenvolvê-la mais, adicionar um contexto e personagens. Às vezes é difícil, inclusive, escolher entre tantas histórias.
                            
Gosto do modo como vocês constroem algumas metáforas no filme. Ao vermos Tzanko ajustar seu relógio de forma exata, percebemos o quão metódico ele é com seu trabalho. Ao ter seu relógio tomado dele, sua vida se torna um caos. A sua incapacidade em contar o tempo representa isso muito bem, pois é o começo da perda de qualquer controle que ele tenha em sua vida.

É uma daquelas coisas que acabam ganhando mais significado do que nós inicialmente prevíamos no roteiro. A ideia em torno do relógio surgiu depois que nós lemos a respeito da história de que o ministro dos Transportes havia agraciado um funcionários da companhia de trem que trabalhava nos trilhos com um novo relógio que, com duas semanas de uso, parou de funcionar. Nós ficamos sabendo que esse fato chegou às manchetes e foi algo muito engraçado de se observar. Então, a ideia nos ocorreu. De tornar aquele fato ainda mais engraçado colocando no processo o fato de que, no momento em que eles dão ao homem o relógio de presente, eles acabam perdendo o que ele estava usando, que calhou de ser justamente um item de profunda ligação emocional para ele, pois pertenceu a seu pai.


Tzanko e o começo de sua tragédia
Em outra utilização simbólica, Julia tira uma peça de roupa e se esconde atrás da bandeira da União Européia. Pode parecer uma cena simples, mas há bastante significado por trás daquele ato em relação ao modo como o dinheiro e o poder a protegem das consequências de seus atos. 

Essa cena foi totalmente improvisada. Eles tinham aquela bandeira da União Européia na locação onde estávamos filmando. E ela acabou aparecendo na tomada. Então decidimos usá-la. Acabou resultando numa cena ótima, não somente porque toda aquela situação é engraçada, mas porque permite ao espectador encontrar diferentes significados por trás dela.

Mas a personagem de Julia não é alguém unidimensional. Há uma profundidade em seus dramas, também, com as cobranças pela maternidade. Porém, suas atitudes acabam impedindo que o espectador crie qualquer empatia por ela. Foi intencional essa construção?

Algumas pessoas são prisioneiras do próprio ego. Elas simplesmente não conhecem outro modo de levar a vida. No entanto, há momentos nessa mesma vida em que a realidade e as consequências de suas ações voltam e as atingem em cheio. Por um momento, tais pessoas até percebem o quão cretinas elas são ao pensar em suas atitudes. Mas, claro, tais momentos passam e elas voltam a agir do modo como acham normal em se agir. A não ser que o impacto de tais consequências seja brutal. Agora, claro, não significa que, mesmo isso acontecendo em um nível mais amplo, necessariamente tenhamos que criar alguma empatia. Cabe ao espectador decidir se devem rejeitar ou aceitar aquele comportamento da personagem, mas nós também queremos deixar claro que esta escolha tem suas consequências.

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