(Brasil, 2017) Direção: Marcelo Machado. Com Benjamim Taubkin.
Por João Paulo Barreto
A rigor, documentários musicais seguem à risca uma fórmula
que pode ou não ser bem sucedida. Tal estrutura se baseia em uma série de
depoimentos acerca de um tema, de uma banda ou pessoa específica ou de um disco
marcante. Tais falas são geralmente intercaladas por imagens de arquivo do
objeto de pesquisa, shows e cenas familiares. Este é o lugar comum dos
documentários musicais. Não que seja um erro seguir este padrão. Só para citar
dois excelentes: Searching For Sugarman, sobre
o músico Sixto Rodriguez, e Living in the
Material World, documento sobre a vida de George Harrison, com Scorsese
capitaneando, acertam em suas construções, mesmo se baseando nesta direção. No
entanto, quando um realizador ousa fugir deste enquadramento, é quando as
verdadeiras surpresas se apresentam ao espectador.
No caso de O Piano que
Conversa, vencedor do Prêmio Petrobrás do Festival In-Edit Brasil, essa
riqueza de possibilidades exploradas é o que salta aos olhos (e ouvidos) do
público. Trata-se de uma proposta ousada: apresentar um documentário acerca da
música, usando o piano como norte, mas sem se basear em falas. Tendo o instrumento como chave e sem qualquer
diálogo ou depoimento para a câmera, o diretor Marcelo Machado constrói
gradativamente uma narrativa através desta união, apresentando um leque
surpreendente de possibilidades nos caminhos encontrados ao optar apenas pela música
para levar pela mão o seu público.
Benjamim Taubkin durante apresentação que integra o filme |
Nesta missão, ele acompanha o experiente pianista Benjamim
Taubkin, que se encontra com músicos de diversas partes do mundo, construindo
um diálogo entre o piano e os mais variados instrumentos. Sem discursos, o
filme deixa que quem o assista perceba como será guiado por aquela narrativa. E
o que encontramos é a já citada comunhão de sons e de povos. O pianista se
apresenta com profissionais do Brasil, Israel, Moçambique, Polônia, Bolívia e
Coréia do Sul. Todos os encontros são inseridos na tela de forma orgânica,
calma, fazendo o espectador perceber a cumplicidade daquelas pessoas apenas
através de seus sorrisos, cantos e toques musicais.
“Eu passei muito tempo ensaiando e pensando como fazer esse
filme. Neste período, me aproximei do Benjamim, ouvindo-o tocar e pensando em possibilidades.
O que o eu percebi é que a música instrumental tem um caráter universal. Mesmo
tendo algumas canções cantadas, notei que aquela era uma oportunidade incrível
para poder privilegiar a essência da música. Com isso em mente, a ideia era se
afastar da palavra, se afastar das entrevistas, dos depoimentos, que são umas
características fortes dos documentários musicais”, explica o diretor Marcelo
Machado.
UNIÃO DE INSTRUMENTOS
Para Benjamim Taubkin, criar esse diálogo através da música
não era algo tão difícil em sua posição de instrumentista. “Em minha vida,
quando estou tocando, eu acho que expresso coisas que são mais difíceis de
expressar em palavras. De alguma forma, sinto que há uma comunicação que vai
direto para a música. Que é uma linguagem dela. Durante o projeto, essa
sensação de que tal linguagem estava prevalecendo era clara. E eu me sentia
muito bem com isso”, explica. Com a não inserção de diálogos, o filme valoriza
essa comunicação, extrapolando-a para um nível ainda maior, quando, por
exemplo, une instrumentos de diferentes culturas (no caso, um berimbau e de uma
cítara coreana) em uma mesma mensagem.
O pianista junto ao percussionista israelense Itamar Doari |
O diretor Marcelo Machado explica que “nessa cena, se você
prestar atenção, verá que o timbre da cítara tocada por aquele musicista da
Coréia e o do berimbau dialogam de forma linda. O berimbau, um instrumento
rústico, de apenas uma corda, comparado à cítara, com 25 cordas. Há algo do
encontro de algo ao mesmo tempo antigo e sofisticado com o elemento rústico do
berimbau, mas não por isso menos rico”.
MONTAGEM APURADA
Um grande passo para tornar aquela narrativa fluída, sem
descambar para o monótono, era a montagem. Para tanto, o cineasta contou com a
experiência de Joaquim Castro, que já havia trabalhado em outros dois
documentários musicais que surpreendiam por sua estrutura fora dos padrões.
“Após assistir ao filmes Jards,
sobre o Jards Macalé, e Dominguinhos,
ambos montados pelo Joaquim, eu percebi um olhar bastante sensível que ele
tinha para essa construção. E ele não assina somente a montagem, mas, também, o
desenho de som, junto com o Rafael Benvenuti”, salienta o diretor.
Neste aspecto técnico do filme, o do desenho de som, reside
uma de suas principais riquezas: a construção de uma narrativa através de seus
raccords, que é a união de elementos (sonoros, neste caso) que geram uma
continuidade para o filme, uma estrutura em sua linguagem. Com tal percepção, o
espectador se surpreende ao ver o barulho oriundo de uma ferramenta a lixar um
piano migrar para o som de um caminhão que acolherá aquele instrumento na rua
de uma cidade como São Paulo, onde todos os sons colaboram para uma cacofonia.
Do mesmo modo, em outro cenário do filme, uma fazenda onde o grupo Clareira
toca ao ar livre, o diretor e montador optam por ligar os sons oriundos de um
chocalho bovino, para o som do toque de mãos em palhas de um telhado, seguindo para
o barulho oriundo de uma fogueira.
Participação das cantoras bolivianas |
“Essa ideia dos sons inseridos vem de algo que eu e o
Benjamim tínhamos planejado fazer, que era abordar um documentário sobre essa
transformação dos sons em música. Essa cacofonia, os sons da cidade, com os
sons rurais, tudo contribuiu. Havia essa proposta de mostrar a criação da
música através de ruídos, algo que, para mim, que passou a adolescência ouvindo
o mestre Hermeto Pascoal, sabia que não era algo muito incomum. Sempre
aprendemos com esses mestres aqui. Que desses ruídos era possível fazer música”,
salienta Marcelo.
ALMA DO PIANO
Com o título a destacar principalmente a presença do piano
em cena, o filme casa aos seus sons imagens do instrumento em uma ambientação
repleta de simbolismo. É o caso quando o diretor opta por mostrar o funcionar
de um piano por dentro, algo que remete à ideia de introspecção do músico.
“Para mim, esses momentos trazem essa analogia do pianista que mergulha para
dentro, sabe? Que busca em sua introspecção algo que o mova ao tocar, algo que
vem de dentro, mesmo ”, completa Marcelo.
Para Benjamim, essa introspecção se relaciona justamente com
o que foi dito por ele acerca de conseguir se expressar mais facilmente com a
música do que com as palavras. O pianista, no entanto, em tempos xenofóbicos, ratifica
uma mensagem ainda mais importante do filme: a de respeito por outros povos e
culturas. “Nestes encontros, buscamos um contato verdadeiro com outras
culturas. Buscamos conhecer a música e ter um diálogo com ela. O som gerado é
algo comum aos dois lados. É uma descoberta e nós aprendemos muito”, afirma
Benjamim. Para se transmitir respeito, nem sempre são necessários diálogos.
Muitas vezes um sorriso sincero basta. O filme traz isso de sobra.
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