domingo, 17 de setembro de 2017

Entrevista: Aly Muritiba

Entrevista originalmente publicada no A Tarde On line:


O cineasta Aly Muritiba durante o festival de San Sebastian
Nascido em Mairi, interior da Bahia, Aly Muritiba estudou História no sudeste e trabalhou durante vários anos como agente penitenciário no Paraná. Migrar para o cinema era algo impensável para o jovem de, até então, pouco menos de trinta anos. A abertura de um curso de cinema em uma universidade paranaense trouxe a ele não somente uma oportunidade de se dedicar à sétima arte, mas uma chance de escapar da estafante e estressante rotina de trabalho dentro do sistema carcerário. “Lembro-me que foram três coisas que me atraíram ao curso de cinema: uma era o fato de que era gratuito; a segunda razão era que acontecia durante as tardes, e a terceira e mais importante: significava uma pausa preciosa na minha rotina dentro da penitenciária como agente”, relembra o cineasta durante o papo pós-exibição de seu novo filme, A Gente, última parte da Trilogia do Cárcere, iniciada com os curtas A Fábrica e Pátio. Voltar ao seu mesmo local de trabalho antes da labuta como diretor traz um impacto significativo para o diretor. Na entrevista a seguir, Muritiba comenta essa experiência e salienta a desesperança de um sistema prisional que visa o lucro antes da teórica ressocialização dos seus internos.

Por João Paulo Barreto

Este é o seu terceiro filme a discutir o sistema prisional. Trata-se de um tema do qual você tem muita familiaridade pela sua experiência como agente penitenciário.
Na verdade, me interessa discutir temas que são relevantes para mim e que eu julgo que talvez sejam pertinentes discutir com a sociedade. As questões que são abordadas pela Trilogia do Cárcere, que é encerrada agora pelo A Gente, são questões que dizem respeito ao sistema penitenciário e que a sociedade precisa de alguma maneira encarar. Ela precisa discutir para de alguma forma encontrar uma... bem, solução eu não acredito que seja a palavra certa, mas pelo menos encontrarmos alguma maneira de remediar a situação calamitosa daqueles que habitam o sistema carcerário. Mas, claro, em meus filmes não é o único assunto sobre o qual eu falo e sobre o qual eu queira falar. Eu tenho alguns próximos trabalhos que estou desenvolvendo agora e que, também, abordam temas atuais e urgentes. No caso da cinematografia que eu faço, é justamente temas assim que me interessam.  (NE. O próximo filme de Aly Muritiba chama-se Ferrugem e aborda a exposição na internet pelo ponto de vista adolescente.)

Você opta por inserir códigos de radiocomunicação a dividir os atos do filme e isso funciona como um guia para o espectador diante daquele labirinto. Como se deu essa escolha?
O filme é dividido em cinco partes que são nominadas pelo código Q, uma linguagem universal, na radiocomunicação. E é uma linguagem que a gente utiliza, os agentes penitenciários, policiais, operadores de rádio amador para poder abreviar e tornar a comunicação mais precisa. Os códigos que aparecem na tela praticamente dão nomes aos capítulos. No entanto, estes nomes só são apreendidos por quem entende a língua Q. Para quem não entende, rola uma espécie de desnorteamento, algo que, inclusive, me interessa também.  Esse desnorteamento nos corredores da penitenciária traz a proposta do filme em dar ao espectador a oportunidade de entrar em uma penitenciária, de viver o dia a dia de uma prisão, quase que de maneira antropológica, sem grandes explicações, mas com a segurança e o conforto da cadeira de cinema.

O protagonista Jefferson Waiku e os desafios de sua rotina
Nessa entrada no sistema prisional, entretanto, você acaba levando o espectador para dentro da vida do agente Jefferson Waiku.
Sim. Era importante para mim, também, que o agente penitenciário fosse mostrado tanto na esfera privada quanto na profissional para que a gente enxergasse o homem que há por trás do colete, o homem que há por trás da farda. E o Jefferson, que acabou sendo escolhido como protagonista do filme, tem uma vida particular bastante peculiar. Ele é pastor evangélico de uma pequena comunidade e este aspecto é muito rico para o filme, muito interessante. Trata-se de um agente penitenciário que trabalha em um sistema que, embora a lei diga que deve  ser ressocializante, é na verdade punitivo. Assim, como agente penitenciário, ele trabalha na lógica da punição. E quando está fora da cadeia, atuando como pastor evangélico, ele esta trabalhando na lógica da salvação e do perdão, que são aspectos de certa maneira contraditórios. E isso torna o personagem dele bem mais profundo.

Exato. Eu enxergo essa atuação dele como pastor imaginando que sua postura é a de evitar que jovens entrem no crime e que ele precise encará-los no futuro.
É uma leitura possível, sim. Uma forma de atuar onde o Estado não atua. O Estado falha.

Seu filme traz uma desfragmentação do Jefferson Waiku, mostrando-o gradativamente perdendo sua postura fria e calma diante de sua rotina dentro do sistema penitenciário.
É. Esse sistema é uma máquina de moer carne. E ela mói a carne do detento e mói a carne do agente, também. É muito difícil você manter um equilíbrio. Digo isso com propriedade porque eu fui agente penitenciário. É difícil você manter a sanidade, a ética e a crença ali dentro. Porque as condições dadas, ou melhor, as não condições dadas pelo Estado destroem qualquer possibilidade de execução do trabalho de maneira adequada. O Estado se ausenta completamente. A burocracia estatal acaba com qualquer profissionalismo que você tenha. E isso acaba sendo encarnado pelo Jefferson de maneira bastante didática.

Após os dois curtas que traziam, também, o sistema prisional como foco, A Gente muda o foco de abordagem, causando, além disso, uma sensação claustrofóbica de labirinto no espectador.
Sim. Diferente dos dois filmes anteriores, que falam dos pontos de vista ou da família do preso, no caso de A Fábrica, ou do ponto de vista próprio preso, em Pátio, em A Gente, eu queria falar única e exclusivamente do agente penitenciário. Nesse sentido, o preso e a cela são os objetos de trabalho dele. Eles funcionam muito bem fora de quadro, como estes objetos sem rosto, mas com voz, com o quais ele tem que trabalhar diuturnamente. E a cadeia, no caso,  uma penitenciaria, é um grande labirinto kafkiano burocrático. Você tem que ficar tentando encontrar uma saída. E não tem saída. Aí, nesse sentido, a geografia e a arquitetura da penitenciária foram utilizadas para transmitir essa sensação de claustrofobia burocrática kafkiana.

O cineasta e seu protagonista
Como se deu sua migração de agente penitenciário para cineasta?
Eu fui estudar cinema muito tarde na vida. Já com vinte e sete anos de idade, eu fui fazer uma faculdade na área. Entrei na universidade porque a rotina na penitenciaria era estafante e estressante. Eu estava a fim de encontrar outra atividade social que fosse um pouco mais lúdica, na qual eu pudesse conviver e interagir com pessoas de outra natureza. Encontrei nas cadeiras acadêmicas esse refúgio. Escolhi esse campo porque imaginei que seria muito fácil estudar cinema, vendo filmes, escrevendo sobre filmes e coisas do gênero (risos). Mas, aí, ao entrar na faculdade, me encantei completamente com o fazer cinematográfico. Comecei a realizar e, depois, isso se tornou algo sustentável para mim. Após um tempo, deu para abandonar a cadeia e me dedicar apenas ao cinema.

Imagino que, para você, aquele período na sala de aula tinha um impacto bem maior de libertação que para muitos dos seus colegas de classe.
Ah, eu imagino que sim (risos).

Após passar pelo sistema carcerário como agente interno e como observador fílmico, você diria que há alguma possibilidade desse sistema mudar?
Ah, não. Eu não tenho qualquer esperança de que o sistema possa mudar. Também não tenho qualquer esperança de que meu filme possa contribuir para qualquer mudança neste sistema. Ele pode, no máximo, fomentar uma discussão, mas eu não tenho essa visão naive, inocente. Eu sei que o sistema gera muito lucro para empresas terceirizadas e para entes políticos. Quanto mais encarcerados mais serviços terceirizados são necessários. Então, eu tenho certeza que o sistema continuará tão ruim ou pior do que aquele que eu encontrei e que eu retrato no filme. Isso não vai mudar. 

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