Entrevista originalmente publicada no A Tarde On line:
O cineasta Aly Muritiba durante o festival de San Sebastian |
Nascido em Mairi, interior da Bahia, Aly Muritiba estudou
História no sudeste e trabalhou durante vários anos como agente penitenciário
no Paraná. Migrar para o cinema era algo impensável para o jovem de, até então,
pouco menos de trinta anos. A abertura de um curso de cinema em uma
universidade paranaense trouxe a ele não somente uma oportunidade de se dedicar
à sétima arte, mas uma chance de escapar da estafante e estressante rotina de
trabalho dentro do sistema carcerário. “Lembro-me que foram três coisas que me
atraíram ao curso de cinema: uma era o fato de que era gratuito; a segunda
razão era que acontecia durante as tardes, e a terceira e mais importante: significava
uma pausa preciosa na minha rotina dentro da penitenciária como agente”,
relembra o cineasta durante o papo pós-exibição de seu novo filme, A Gente, última parte da Trilogia do Cárcere, iniciada com os
curtas A Fábrica e Pátio. Voltar ao seu mesmo local de
trabalho antes da labuta como diretor traz um impacto significativo para o
diretor. Na entrevista a seguir, Muritiba comenta essa experiência e salienta a
desesperança de um sistema prisional que visa o lucro antes da teórica
ressocialização dos seus internos.
Por João Paulo Barreto
Este é o seu terceiro
filme a discutir o sistema prisional. Trata-se de um tema do qual você tem
muita familiaridade pela sua experiência como agente penitenciário.
Na verdade, me interessa discutir temas que são relevantes
para mim e que eu julgo que talvez sejam pertinentes discutir com a sociedade.
As questões que são abordadas pela Trilogia
do Cárcere, que é encerrada agora pelo A
Gente, são questões que dizem respeito ao sistema penitenciário e que a
sociedade precisa de alguma maneira encarar. Ela precisa discutir para de
alguma forma encontrar uma... bem, solução eu não acredito que seja a palavra
certa, mas pelo menos encontrarmos alguma maneira de remediar a situação
calamitosa daqueles que habitam o sistema carcerário. Mas, claro, em meus
filmes não é o único assunto sobre o qual eu falo e sobre o qual eu queira
falar. Eu tenho alguns próximos trabalhos que estou desenvolvendo agora e que,
também, abordam temas atuais e urgentes. No caso da cinematografia que eu faço,
é justamente temas assim que me interessam.
(NE. O próximo filme de Aly
Muritiba chama-se Ferrugem e aborda a
exposição na internet pelo ponto de vista adolescente.)
Você opta por inserir
códigos de radiocomunicação a dividir os atos do filme e isso funciona como um
guia para o espectador diante daquele labirinto. Como se deu essa escolha?
O filme é dividido em cinco partes que são nominadas pelo
código Q, uma linguagem universal, na radiocomunicação. E é uma linguagem que a
gente utiliza, os agentes penitenciários, policiais, operadores de rádio amador
para poder abreviar e tornar a comunicação mais precisa. Os códigos que
aparecem na tela praticamente dão nomes aos capítulos. No entanto, estes nomes
só são apreendidos por quem entende a língua Q. Para quem não entende, rola uma
espécie de desnorteamento, algo que, inclusive, me interessa também. Esse desnorteamento nos corredores da
penitenciária traz a proposta do filme em dar ao espectador a oportunidade de
entrar em uma penitenciária, de viver o dia a dia de uma prisão, quase que de
maneira antropológica, sem grandes explicações, mas com a segurança e o
conforto da cadeira de cinema.
O protagonista Jefferson Waiku e os desafios de sua rotina |
Nessa entrada no
sistema prisional, entretanto, você acaba levando o espectador para dentro da
vida do agente Jefferson Waiku.
Sim. Era importante para mim, também, que o agente
penitenciário fosse mostrado tanto na esfera privada quanto na profissional
para que a gente enxergasse o homem que há por trás do colete, o homem que há
por trás da farda. E o Jefferson, que acabou sendo escolhido como protagonista
do filme, tem uma vida particular bastante peculiar. Ele é pastor evangélico de
uma pequena comunidade e este aspecto é muito rico para o filme, muito
interessante. Trata-se de um agente penitenciário que trabalha em um sistema
que, embora a lei diga que deve ser
ressocializante, é na verdade punitivo. Assim, como agente penitenciário, ele
trabalha na lógica da punição. E quando está fora da cadeia, atuando como
pastor evangélico, ele esta trabalhando na lógica da salvação e do perdão, que
são aspectos de certa maneira contraditórios. E isso torna o personagem dele
bem mais profundo.
Exato. Eu enxergo
essa atuação dele como pastor imaginando que sua postura é a de evitar que
jovens entrem no crime e que ele precise encará-los no futuro.
É uma leitura possível, sim. Uma forma de atuar onde o
Estado não atua. O Estado falha.
Seu filme traz uma
desfragmentação do Jefferson Waiku, mostrando-o gradativamente perdendo sua
postura fria e calma diante de sua rotina dentro do sistema penitenciário.
É. Esse sistema é uma máquina de moer carne. E ela mói a
carne do detento e mói a carne do agente, também. É muito difícil você manter
um equilíbrio. Digo isso com propriedade porque eu fui agente penitenciário. É
difícil você manter a sanidade, a ética e a crença ali dentro. Porque as
condições dadas, ou melhor, as não condições dadas pelo Estado destroem
qualquer possibilidade de execução do trabalho de maneira adequada. O Estado se
ausenta completamente. A burocracia estatal acaba com qualquer profissionalismo
que você tenha. E isso acaba sendo encarnado pelo Jefferson de maneira bastante
didática.
Após os dois curtas
que traziam, também, o sistema prisional como foco, A Gente muda o foco de abordagem, causando, além disso, uma
sensação claustrofóbica de labirinto no espectador.
Sim. Diferente dos dois filmes anteriores, que falam dos
pontos de vista ou da família do preso, no caso de A Fábrica, ou do ponto de vista próprio preso, em Pátio, em A Gente, eu queria falar única e exclusivamente do agente
penitenciário. Nesse sentido, o preso e a cela são os objetos de trabalho dele.
Eles funcionam muito bem fora de quadro, como estes objetos sem rosto, mas com
voz, com o quais ele tem que trabalhar diuturnamente. E a cadeia, no caso, uma penitenciaria, é um grande labirinto kafkiano
burocrático. Você tem que ficar tentando encontrar uma saída. E não tem saída.
Aí, nesse sentido, a geografia e a arquitetura da penitenciária foram
utilizadas para transmitir essa sensação de claustrofobia burocrática kafkiana.
O cineasta e seu protagonista |
Como se deu sua migração
de agente penitenciário para cineasta?
Eu fui estudar cinema muito tarde na vida. Já com vinte e
sete anos de idade, eu fui fazer uma faculdade na área. Entrei na universidade
porque a rotina na penitenciaria era estafante e estressante. Eu estava a fim
de encontrar outra atividade social que fosse um pouco mais lúdica, na qual eu
pudesse conviver e interagir com pessoas de outra natureza. Encontrei nas
cadeiras acadêmicas esse refúgio. Escolhi esse campo porque imaginei que seria
muito fácil estudar cinema, vendo filmes, escrevendo sobre filmes e coisas do
gênero (risos). Mas, aí, ao entrar na faculdade, me encantei completamente com
o fazer cinematográfico. Comecei a realizar e, depois, isso se tornou algo
sustentável para mim. Após um tempo, deu para abandonar a cadeia e me dedicar
apenas ao cinema.
Imagino que, para
você, aquele período na sala de aula tinha um impacto bem maior de libertação que
para muitos dos seus colegas de classe.
Ah, eu imagino que sim (risos).
Após passar pelo
sistema carcerário como agente interno e como observador fílmico, você diria
que há alguma possibilidade desse sistema mudar?
Ah, não. Eu não tenho qualquer esperança de que o sistema
possa mudar. Também não tenho qualquer esperança de que meu filme possa
contribuir para qualquer mudança neste sistema. Ele pode, no máximo, fomentar
uma discussão, mas eu não tenho essa visão naive,
inocente. Eu sei que o sistema gera muito lucro para empresas terceirizadas e
para entes políticos. Quanto mais encarcerados mais serviços terceirizados são
necessários. Então, eu tenho certeza que o sistema continuará tão ruim ou pior
do que aquele que eu encontrei e que eu retrato no filme. Isso não vai mudar.
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