(Brasil, 2015) Direção: Cristiano Burlan. Com Jean-Claude
Bernardet, Ana Carolina Marinho, Francis Vogner.
Por João Paulo Barreto
Em Fome, o diretor
Cristiano Burlan nos convida a adentrar na vida de um morador de rua, a
caminhar junto a seus passos desvairados, a seguir pelos mesmos caminhos sem
direcionamento das ruas de São Paulo, percorrendo a esmo aquelas esquinas como
se a tentar encontrar seu próprio caminho. Inicialmente, pensamos se tratar de
alguém, de fato, em busca de um norte, principalmente pelo modo eficiente como
os travelings e os planos sequência são utilizados. Não obstante, tal
personagem busca justamente o contrário: ele busca se perder cada vez mais.
Interpretado com intensidade pelo professor, escritor,
teórico, crítico e ator, Jean-Claude Bernardet, uma das instituições do estudo
do cinema no Brasil, o morador de rua de sotaque estrangeiro é apresentado
inicialmente apenas como mais um a viver sem um teto fixo, sem uma rotina
especifica, sem um lugar que ele possa, realmente, chamar de seu. É um
personagem que nos causa reflexão. Que leva o espectador a refletir acerca da
invisibilidade do ser humano nas grandes metrópoles, acerca da necessidade que
as classes em situações mais confortáveis possuem de se verem obrigadas a se
importar com tais indivíduos na esperança não de demonstrarem-se generosas, mas
apenas na intenção de cumprir um protocolo de benevolência falso e hipócrita. Em
certo momento, uma discussão do personagem com um casal de bons samaritanos que
lhe oferece restos de um jantar denota muito bem isso.
Sem destino: buscando a redenção através do vagar pelo nada |
E o sem teto vivido por Bernardet refuta justamente essa condição.
Ele não almeja ser “vitima” da caridade alheia. Ele não precisa viver na auto piedade
de quem está em situação mais confortável que ele. Seu desejo é encontrar um
sentido para sua vida justamente no mergulho na sarjeta, no alcance da plenitude
que somente a sujeira e a completa ausência de posses parece lhe conceder.
Amigável em determinado momento, resolve ajudar uma estudante em sua pesquisa
social, respondendo-lhe questões planejadas e de cunho acadêmico. Ao quebrar
aquele ritual trazendo o domínio para si e cantando uma canção em francês que
rememora de sua infância, o homem entrega um vestígio do que ele já foi. Algo
que, pelo visto, lhe faz sentir certa falta. Um breve sinal de algo que o
atormenta, mas que ele evita deixar transparecer.
A estrutura inicial escolhida por Burlan ao apresentar seu
filme como uma mescla documental e de ficção traz força para o resultado final.
Nos depoimentos dos moradores de rua, ouvidos pela estudante para sua pesquisa,
falas sinceras são captadas, problemas alheios são compartilhados e uma
pertinente face do filme começa a se desenhar. Tal face está na ideia de que, da
mesma forma que a ajuda dispensada de modo supostamente caridoso serve como meio
protocolar e egoísta de se cumprir um ritual perante a sociedade, a pesquisa
acadêmica executada pela estudante serve apenas como um modo de se usar e
descartar aquelas pessoas. Algo que é corroborado, apesar da maneira frágil de
se levar o espectador pela mão, em um belo discurso ao final do filme.
Conflito de acadêmicos: aluno e professor se reencontram |
Curiosamente, Fome utiliza
a construção do personagem de Bernardet de modo a brincar com a empatia do
espectador. Tal elemento é colocado à prova em um diálogo intenso entre um
ex-aluno que reconhece o sem-teto como seu professor do tempo da faculdade.
Destilando violência e sarcasmo em cada palavra proferida, os dois discutem a
ideia adotada pelo professor de se alcançar o verdadeiro conhecimento ao se
permitir perder tudo. Vivido pelo crítico e pesquisador Francis Vogner, o
ex-aluno nos entrega uma face até então desconhecida de arrogância que o atual
sem-teto possuía quando ainda se considerava parte da sociedade. A amargura se
torna palpável.
Na representativa cena em que vemos o sem-teto se banquetear
na comida que encontra no lixo e que lhe aplaca a fome, um sincero oferecimento
de ajuda lhe é oferecido e, surpreendentemente, aceito. Talvez a mais eficiente
corroboração de Fome esteja na ideia
de que, de fato, nenhum homem é uma ilha.
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