Orquestra Invisível Let´s Dance (São Paulo, 2016, 20min) Direção:
Alice Riff.
Com uma estrutura já convencional de apresentação de
personagem, o documentário Orquestra Invisível
Let´s Dance tem justamente nessa escolha de desenvolvimento sua principal
falha. Ao optar pela captação de depoimentos de maneira um tanto repetitiva,
sem inovar nos discursos um após o outro, o filme acaba precisando da
redundância de uma narração em voz over para levar pela mão o espectador em sua
história.
História essa que, ao menos, cativa o público por conta do imenso carisma de seu protagonista. No caso, trata-se de Osvaldo Pereira, o primeiro DJ do Brasil e precursor das vitrolas e das trocas de discos de vinil nos bailes dos anos 1950 e 1960. Substituindo as grandes orquestras que, até então, eram contratadas para animar os bailes e, por consequência, carecendo de um grande investimento por parte dos organizadores,
Seu Osvaldo, como era
conhecido, revolucionou o negócio dos bailes. Sendo apenas ele à frente do som e um grupo pequeno de
pessoas na organização das festas, o ramo se tornou rentável, uma vez que o
retorno financeiro era bem maior sem a necessidade de se bancar grandes grupos
de músicos profissionais. Daí a ideia de chamar o que Seu Osvaldo oferecia de
“Orquestra Invisível”, uma vez que, ele sozinho, junto a uma vasta coleção de
vinis, era responsável pela animação de diversas festas.
Seu Osvaldo, o primeiro DJ do Brasil |
É neste ponto que o documentário dirigido por Alice Riff acerta,
quando a influência musical é colocada em evidência ao se abordar o tipo de som
que Seu Osvaldo tocava à época. Exibindo uma invejável coleção de vinis, que
vão desde um Ray Conniff ainda sem a característica principal dos cabelos
grisalhos à marca registrada dos bailes do período com Glenn Miller inserindo o
clima, o curta utiliza bem a fala de Seu Osvaldo para relembrar o período da
forma como deve ser feito: com as influências musicais que o definiram como um
precursor dos bailes blacks e do funk que, para usar uma gíria do período, se
tornariam uma “coqueluche” cultural.
Tributo a uma figura que merece o registro para a
posteridade não somente pela sua importância histórica, mas pelo carisma tão
contagiante quanto seu som.
Antonieta (Santa Catarina, 2015, 15min) Direção: Flávia Person.
Antonieta é um filme
de ritmo eficiente que, mesmo centrado em uma constante narração em off, consegue,
com o importante suporte imagens de arquivo, captar muito bem a atenção do
espectador. Através de breves e concisos
quinze minutos, o curta narra a intensa vida de Antonieta de Barros, a primeira
mulher negra a se tornar parlamentar no Brasil.
Filha de uma ex-escrava, Antonieta tem em sua trajetória no
estado de Santa Catarina do começo do século passado, um exemplo de resistência
e do necessário pensamento à frente do seu próprio tempo. Em sua história, a
paixão pelo magistério a leva a adotar a vocação de modo exclusivo, não
sobrando espaço em sua vida para casamento ou filhos. Um sacerdócio, como
insere a narração.
Antonieta de Barros |
Trata-se de um curta que prima por uma precisa pesquisa do
seu tema de estudo. Que delineia, sem a necessidade floreios, a vida de sua
personagem de modo conciso, trazendo para o espectador o peso exato da
importância de Antonieta de Barros para o tempo em que viveu, no qual despertou
o respeito disfarçado oriundo das influentes famílias brancas e racistas (suas
classes eram disputadas por todos os representantes da elite catarinense que
queriam os filhos como alunos de Antonieta) e se firmou na luta pelos direitos
das professoras quando fundou a Liga dos Magistérios. No absurdo pensamento da
época, as professoras não podiam se casar ou ter filhos, pelo fato de que essa
condição poderia levar as crianças a indagá-las sobre sua sexualidade e vida
afetiva.
Ao utilizar imagens oriundas das primeiras décadas do século
XX para ilustrar a narração explicativa da vida de sua personagem, a montagem
do curta demonstra sagacidade, como, por exemplo, no momento em que traz a
opinião de Antonieta acerca da necessidade obrigatória do saber como sendo uma arma.
“Só vive no sentido humano da palavra o que pensa. Os outros se movem, tão
somente”, insere a voz over. E a exatidão do momento coincide com imagens de
bovinos sendo levados à frente pela violência de boiadeiros. Uma clara alusão à
vida de gado que apenas o conhecimento poderia evitar.
Antonieta em meio aos colegas de parlamento no começo do século XX |
Personagem de tema riquíssimo, traz para a obra a
importância de se enxergar a nossa identidade de Brasil. Alguém que lutou desde
o começo para se destacar e fugir das amarras que a manteriam confinada ao
detalhe da cor de sua pele ou ao seu gênero. Luta pela emancipação feminina no
intuito de escapar das amarras do pensamento retrógrado. Nesse ínterim, se torna
cronista de jornal, assinando a coluna “Farrapos de Ideias” sob o pseudônimo de
Maria da Ilha e batendo de frente com declarações pejorativas e racistas acerca
de seus escritos. “Intriga barata de senzala”, carimba um historiador da época.
Na réplica, já se encontrando exonerada da escola onde
lecionava pelas forças sombrias e racistas do período do Estado Novo, Antonieta
demonstra sua elegância e orgulho pela sua luta ao afirmar que “não houve
intriga barata, nem cara. As considerações foram ditadas pelo coração de uma
negra brasileira que se orgulha de sê-lo e que nunca se pintou de outra cor.”
Na força de seu discurso, a sensatez que apenas os detentores da razão possuem.
Uma pena que a diabetes a tenha levado com apenas 51 anos. Imaginar
o que Antonieta teria feito em mais trinta anos é algo por demais desafiador e
reconfortante.
Ao conhecer sua vida, fica a certeza de que, contra os
hipócritas e racistas, a pena é mais forte que a espada.
Mas a arma afiada não pode ser descartada, friso.
Abigail (Rio de Janeiro, 2016, 17min) Direção: Valentina Homem e Isabel Penoni
Existe uma ambientação quase de cinema de gênero no inicio do
curta dirigido por Valentina Homem e Isabel Penoni. Trata-se de um filme
extremamente sensorial.
Desde seu convidativo plano sequência de abertura, quando
somos levados a conhecer os cômodos da casa da personagem-título, com as
camadas dos seus objetos pessoais expostos a desenhar sua personalidade para o
espectador que não a conhece, até o momento chave daquela introdução, quando o
filme interrompe o silêncio gritante (e, até então, imperceptível) para inserir
um intenso som metálico, um assustado latido e a aparição de uma representação
do candomblé a tomar toda a nossa atenção e nos tirar daquele quase transe de
imersão onde nos encontrávamos. A energia da cena é palpável.
Abigail traz uma
forma de apresentação de sua personagem que foge de clichês descritivos
convencionais. Mesmo em sua narração em off, não se percebe uma necessidade
explicita de descrever a vida de Abigail Lopes, indianista e esposa de
Francisco Meireles, um sertanista que, ao lado dela, lutou pelos direitos dos
nativos. A voz, entretanto, nos convida a adentrar naquele contexto. E, somado
ao modo aconchegante como passeamos por aqueles recintos, acabamos por nos
sentir à vontade ali e ainda mais curiosos por conhecer a trajetória daquela
senhora que, já na fase final de sua vida, em uma fala marcante captada pelas
diretoras, se considera teimosa como justificativa ao fato de possuir suas
coisas.
Momento de entrega e de união de suas duas missões |
De fato, é algo não tão simplório quanto teimosia o que
explica tudo que o que ela conquistou, não somente em relação às posses
materiais, obviamente, mas em termos sociais na aproximação com os indos e na
defesa pela sua causa. É resignação. Neste processo, foi responsável pela
pacificação dos Xavantes, algo que o filme levanta como um fato do qual ela se
arrepende por considerar que eles tiveram acesso ao que não presta ao lado dos
brancos.
Ao abraçar o
candomblé e uni-lo à cultura indígena que já havia absorvido, Abigail encontra
um equilíbrio denotado no momento em que comenta acerca do Obaluaê, um dos
símbolos dessa cultura, que pertencia ao seu filho, Apoena Meireles,
assassinado em 2004. “A gente não pode ter medo de nada”, diz a senhora
enquanto parece confortar uma das diretoras presentes. Um pedido de benção
demonstra a admiração pela mulher em estudo.
Na mescla de cumplicidade com sua protagonista, o filme
cumpre um papel ainda mais importante que o de registrar a vida e luta de
Abigail Lopes. O de cultivar o respeito por aquela cuja trajetória fez a
diferença para todo um povo e que, no final de seus dias, encontra o conforto
no exílio particular de seu próprio mundo, representado pela presença física
que aquele lar, o segundo personagem do filme, denota.
Retrato de Carmem D. (Rio de Janeiro, 2015, 21min) Direção: Isabel
Joffilly.
Em outra obra da nona Mostra Competitiva em que se observa
uma relação intima do espaço físico com o estudo de seus personagens, Retrato de Carmem D. possui uma carga
dramática mais pesada e, por conta da interação entre suas duas figuras
centrais, o resultado acaba sendo de uma intensidade palpável.
Carmem Dametto, conhecida psiquiatra residente do Rio de Janeiro,
atende seus pacientes em casa, um imóvel situado em local de perceptível silencio
e de calma bucólica. No entanto, o lugar esconde certo desequilíbrio emocional.
E o filme de Isabel Joffily ressalta justamente esse fato ao confrontar as
diferenças entre a profissional e sua filha, Marcela, jovem cujos traumas de
ter vivido sob a criação pragmática da mãe afloram de forma marcante em seus
depoimentos.
Entre lágrimas, a vemos falar acerca do modo como Carmem não
demonstrava uma cumplicidade de mãe quando as dúvidas comuns à infância
surgiam, afirmando-se não como uma amiga ou como uma psiquiatra para a filha,
mas apenas como mãe, posição que, para ela, não apresentava os atributos ou
obrigações que a filha afirmava.
As dores de uma trajetória vindo à tona e sendo confrontadas |
É um filme que se equilibra muito bem sob as a discussões
das duas mulheres. Discussões essas que podem surgir de pontos tanto graves,
quanto ínfimos, como vemos todo um enérgico argumento que revisita declarações
duras do passado, como quando a jovem afirma ter sido chamada de filha da puta
pela própria mãe quando ainda era criança. E isso acontece a partir de uma
simples conversa acerca da opção de dar ou não leite para os gatos da casa.
Em tons de voz sempre altos, ambas parecem estar a todo
momento sob o fio da navalha para iniciar uma briga. Porém, há uma cumplicidade
notável entre as duas. Chamados de “mãe” ou de “Marcela” demonstram isso. As
rememorações do passado, sobre festas infantis feitas com pacientes presentes
que hoje causam risos ou o suporte demonstrado pela jovem ao falar do caso onde
a mãe foi acusada de assassinato quando um paciente morreu em sua clinica no
final dos anos 1980 (caso já encerrado e Carmem sendo inocentada), também
exibem tais laços entre as duas.
A piscina a representar de modo perfeito o cuidado que aquela relação pede |
E a casa, em toda sua grandeza, com os objetos da rotina a
compor o ambiente doméstico, sem nenhum tipo de “bagunça cênica” inserida pelo
filme, serve como um local perfeito para demonstrar o equilíbrio entre ambas. Em
um momento simbólico, vemos Marcela dentro da agora abandonada e vazia piscina
que, repleta de lodo, carece de uma reforma para voltar a aparentar o que é. Lá
de dentro, a vemos acariciar os cachorros na borda e comentar sobre se lembrar
da mãe bronzeada e defini-la como “briguentinha”, por conta de sua impaciência
em responder as perguntas de criança. É um take que mostra a beleza de um lugar
que carece apenas de atenção.
Rima muito bem com a necessidade da relação entre mãe e
filha.
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