Procura-se Irenice (São Paulo, 2016, 25min) Direção: Marco Escrivão
e Thiago B. Mendonça.
O ano de 2016 trouxe para o Brasil as Olimpíadas. Seria uma
excelente oportunidade para o Comitê organizador dos jogos fazer justiça à
figura de Irenice Rodrigues, a corredora recordista que representaria o Brasil
no evento que, em 1968, foi realizado no México. Infelizmente, a “atleta apagada”
da história continuaria com essa alcunha se não fosse pelo obrigatório curta documentário
dirigido por Marco Escrivão e Thiago B. Mendonça.
À frente do seu tempo por conta de suas opiniões decididas e
postura de não se rebaixar diante do autoritarismo dos militares, Irenice é
trazida de volta à vida através dos depoimentos de pessoas que a conheceram à época
em que seus recordes na pista de atletismo eram constantes. Além disso, a dupla
de diretores insere a performance da bailarina e atriz Kanzelumuka, que
simboliza de modo eficaz a presença da atleta, cuja mordaça simbólica é
apresentada, aqui, de forma real, e a bandeira para qual ela tanto queria
prestar a reverência do alto de um pódio, acaba sendo a mesma que a amarra, a impedindo
de correr.
Vitima de um racismo escancarado no período em que treinava,
sendo diversas vezes questionada acerca de sua presença nos locais como alguém
que, ao invés de reconhecida como uma atleta vencedora, seria empregada
doméstica de alguma família abastada que estaria presente, Irenice era uma
vitima de seu país, um Brasil que naufragava diante de um poderio covarde e
autoritário, ao invés de preservar seus ícones mais representativos.
“As pessoas só atiram pedra na árvore que dá fruto”, afirma
uma das fontes entrevistadas, explicando que os argumentos de Irenice acerca do
cenário de influência maléfica do militarismo no esporte e sobre o modo
vexatório como ela era tratada no seu meio, dentre outros pontos
pertinentemente levantados, eram argumentos válidos, que, em caso de
reverberações, daria, sim, frutos. Então, o apedrejamento oriundo dos poderosos
não tardou.
A mordaça e a bandeira que se tornaram sua prisão |
“A história da Irenice é uma história de uma punição. É a
história de uma segregação. De uma exclusão. É a história de um apagamento”,
frisa uma das fontes na fala que fecha de modo marcante a obra.
A definição perfeita de uma saga que merecia esse registro
trazido à tona no documentário.
* * *
(A Noite Escura da Alma, Bahia, 2015, 85min) Direção: Henrique Dantas.
Abordando de forma precursora a história da ditadura militar
na Bahia, A Noite Escura da Alma, de
Henrique Dantas, é uma obra que, mais do que a reflexão, traz ao espectador,
principalmente aos nascidos ou que vivem na Bahia há muito tempo, um sentimento
de revolta para com todos os mandos e desmandos que o estado sofreu durante os
anos em que viveu sob a sombra do Carlismo.
Reafirmando o fato de que a arte é uma das armas mais
poderosas contra a opressão, o diretor Henrique Dantas acerta ao utilizar
performances de atores no intuito de denotar a brutalidade dos métodos da
ditadura e as ações dos torturadores. E isso sem a necessidade de ser
panfletário em seu discurso ou gratuito em suas imagens e no modo como a mensagem
é passada à platéia.
“Quando você se propõe a contar uma história
da ditadura militar na Bahia, uma história que você não possui uma imagem
sequer, uma vez que tudo foi apagado, tudo se torna mais difícil”, explica Henrique.
“Você não encontra nada nos arquivos de
televisão daqui da Bahia. Só se acha jornais, e, ainda assim, o que se permitia
que saísse impresso na ocasião”, complementa o cineasta. Acaba que, A Noite Escura da Alma se torna um filme
no qual toda a indignação e ojeriza que ele gera contra os representantes
políticos da época surgem não através de fotogramas de arquivo, mas, sim,
através de palavras. Em discursos pesados vindo de vozes inicialmente sem rosto
e oriundas de pessoas que passaram pelo terror, o longa demonstra sua força.
São depoimentos fortes, que constroem a narrativa para o espectador, o fazendo
mergulhar nos mesmos porões onde aqueles cidadãos estiveram.
Na presença de
personagens como Juca Ferreira, Lucia Murat, Emiliano José, Theodomiro dos
Santos, Carlos Sarno, Haroldo Lima, dentre outros, a voz dos que sobreviveram
ao terror daquele período ecoa pelas paredes do Forte do Barbalho, local
oportunamente escolhido pelo diretor para captar os depoimentos. Era no lugar
onde se concentrava a maioria das ações de repressão militar, onde as torturas
aconteciam e assassinatos eram cometidos. O peso da captação daquelas
entrevistas no Forte acaba por contribuir para a atmosfera do filme, mas, sem
necessariamente explorar de modo displicente o emocional das suas fontes.
O silêncio imposto por um poder que controlava tudo |
Fortes em suas palavras, as vozes captadas por Henrique
Dantas trazem fatos relevantes para nossa história, como a questão levantada por
Theodomiro dos Santos, um dos presos à época e protagonista de uma das mais
famosas fugas da penitenciaria Lemos de Brito. Em um dos trechos, Theodomiro
aborda a questão da mão pesada do então governador (colocado no posto pelo
ditador Emílio Garrastazu Médici) Antonio Carlos Magalhães, cuja perseguição
deflagrada a qualquer um contra seu governo era notoriamente violenta e o fato
de que boa parte da responsabilidade pela ausência de memórias relacionadas ao período
ditatorial na Bahia se deve às ações perpetradas por ele.
Em uma época em que seu herdeiro se esforça para desvincular
sua imagem à notória e contumaz truculência que se tornou marca de sua família,
esse ponto de abordagem torna A Noite
Escura da Alma ainda mais essencial. “Eu
me lembro de ter ficado inseguro de inserir tal trecho no filme.”, afirma o
diretor Henrique Dantas. “Na ocasião, eu
liguei para o Theodomiro e falei: ‘Theodomiro, o filme está pronto. Mas tem uma
parada que você fala e que coloca o ACM como assassino. E aí, meu velho?’”,
continua Henrique. A resposta de Theodomiro é uma declaração que simboliza não
somente sua postura decidida, mas, também, uma resposta contra os anos de
silêncio forçado em que vivemos aqui na Bahia. “Ele chegou e disse: ‘Henrique, eu sou que nem índio. O que eu cuspo,
eu não boto pra dentro de novo, não’. Eu me lembro que cheguei a me emocionar
na ocasião”, recorda-se Dantas.
O diretor Henrique Dantas (Foto:Jackson Romanelli. Divulgação) |
Trata-se de uma obra que gera no público uma reflexão
urgente acerca do fato de que a Bahia é uma terra vitima da alegria, fato levantado
por Dantas na sua narração inserida no começo do filme. Onde os problemas
sociais acabam sendo irresponsavelmente escondidos por políticos que usam o
carnaval e a alcunha que esse lugar possui como um fator de influência para
deixar, por ainda mais tempo, a venda nos olhos de seu povo. Iludido por um
suposto estado constante de felicidade (A terra da alegria, como diz a
propaganda oficial), esse povo não se permite apurar seu senso crítico,
deixando-se levar por uma memória curta ou apagada por interesses mesquinhos.
“Meu filme não tem a
pretensão de colocar as pessoas dentro da memória, mas, ao menos, ele as risca,
sabe? Como aquela riscada que você faz do seu nome e o de sua namorada em um coração,
desenhado no muro de sua casa. É um pouco disso que meu filme faz. Ele pega
aquela muro ali no meio do caminho, desenha um coração sangrando e coloca o
nome dessas pessoas dentro”, afirma Henrique Dantas.
De fato, esse coração sangrando aqui na Bahia precisava ser
trazido à tona, principalmente em um período como o atual. Um filme essencial.
Obrigado João Paulo pelas palavras. Depois de 9 meses circulando em festivais, ás vezes fico com a impressão que nem mesmo o cinema brasileiro tem disposição de olhar para esse período, parece que mesmo a memória não se interessa por ele. E acho estranha a carreira desse filme em festivais no Brasil, meio que deslocado para lugares de invisibilidade. Mas é isso, como disse Wally Salomão, a memória é uma ilha de edição e a minha tem editado essas coisas...
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