Entretempos (Ceará, 2015, 7min) Direção: Yuri Firmeza e Fred Benevides.
Tema essencialmente presente entre as obras selecionadas para as mostras competitivas do Cachoeria Doc, Entretempos aborda as transformações de cidades não somente pelo seu viés geográfico e urbanista, mas pelo cunho social e, de forma traumática, excludente no quesito étnico.
Através de colagens de imagens que desenham um panorama de construções e demolições em bairros populares do Rio antigo, mais propriamente a região conhecida como Pedra do Sal ou “pequena África”, nos arredores da Praça Mauá, o filme de Yuri Firmeza e Fred Benevides apresenta uma marcante crítica ao modo como a exclusão racial se encontra tão escancarada na pretensa ideia de “modernização” dos locais comuns a todos.
Nas animações publicitárias de empreendimentos imobiliários, juntamente com a inserção das figuras brancas como um modo a demarcação territorial, uma chocante observação do modo selvagem como a gentrificação de áreas completas de uma cidade pode acontecer tão às claras.
Em seu título, Entretempos propõe esse intervalo, algo que, em um mundo ideal, significaria uma evolução. No entanto, a repetição das mesmas práticas do período colonial se observa apenas como uma roupagem disfarçada, mas tão óbvio quanto o que é evidenciado pelas imagens dos documentos comprovadores de negociações por escravos.
Embranquecimento e gentrificação de uma cidade |
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SemTítulo #2 – La Mer Larme (São Paulo, 2015, 31min) Direção: Carlos Adriano.
Em Sem Título #1: Dance of Leitfossil, o cineasta Carlos Adriano apresentou, em pouco mais de cinco minutos, uma belíssima homenagem a Bernardo Vorobow, seu companheiro de longa data, parceiro na direção de diversos trabalhos e experiente programador que esteve, por quase 40 anos (de 1970 até sua morte, em 2009), à frente de diversos centros de programação cinematográfica, como o Museu da Imagem e Som.
Conhecido como o “Sr. Cinemateca do Brasil”, Vorobow tem sua imagem inserida à bela justaposição da dança de Fred Astaire e Ginger Rogers com a música Desfado, interpretada pela cantora portuguesa Ana Moura. Trata-se uma obra cujo ritmo enérgico, somado ao casamento perfeito entre imagem e som, cativa o espectador de forma acachapante, tornando impossível que um sorriso não se faça presente do começo ao fim de sua breve projeção.
A cumplicidade observada em um frame |
Na sua continuação SemTítulo #2 – La Mer Larme, Adriano dá uma vazão ainda maior à homenagem que continua a merecer Vorobow por sua trajetória no cinema nacional. Aqui, a escolha musical fica por conta da canção francesa La Mer, de Charles Trenet, interpretada por ele e por uma grande variedade de artistas. Nas imagens, observamos dois homens a conversar em um convés, no qual violência da maré e dos ventos os leva a compartilhar uma cumplicidade em comum. Cumplicidade essa que faz referências à forma escolhida pelo diretor a homenagear Vorobow, cujas imagens são, assim como em seu antecessor, novamente inseridas juntamente com registros de um cateterismo, em uma clara alusão às complicações cardíacas que o levaram.
Nas imagens, uma estendida justaposição das cenas já citadas e de colagens de obras seminais dos primórdios do cinema. Uma diferente experimentação, com união de imagens e repetição constante de seu tema musical, algo que pode até causar estranhamento no público desavisado por conta de sua duração e experimentalismos, mas que, da mesma forma que em sua primeira parte, leva o espectador a perceber e se comover diante de um teor saudoso e um modo particular e idiossincrático de se observar o luto.
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Filme de Aborto (São Paulo, 2015, 63min) Direção: Lincoln Péricles.
Há em Filme de Aborto, do diretor Lincoln Péricles, uma análise pertinente do modo como subempregos (no caso, telemarketing) são capazes de destruir auto-estimas e causar depressões. Neste aspecto, o filme funciona por tocar em um assunto delicado, algo já notório e que afeta muitas pessoas. Nesta proposta, ao trazer o tema para uma dramatização, o longa acerta por evidenciar algo que merece atenção. Mas, como seu título já diz, outro ponto é verificado.
Trata-se de uma obra inventiva, que aborda a questão do direito feminino ao aborto de maneira a alfinetar uma sociedade paternalista e machista na qual as mulheres não possuem os mesmos direitos e conivências. Somando-se ao drama imposto pela necessidade empregatícia, o filme acaba mirando e desenvolvendo não exclusivamente um único aspecto que aflige seus personagens, o que gera um problema no foco que o trabalho possui. A escolha não chega a prejudicar o resultado, mas o modo como isso é executado, sim. Principalmente quando o filme opta por inserções de imagens (vide a sequência com o vagabundo de Chaplin) que servem apenas para causar uma quebra em sua narrativa, mas que não alcançam qualquer intento.
Desconsiderando isso, é interessante focar nos pontos de acerto de Péricles. O mais óbvio reside na inversão irônica de um casal que deseja ter filhos, mas, no contexto, quem engravida é o homem. O aborto, nesse caso, é legal, uma vez que não é realizado pela mulher. Neste aspecto, o filme traz boas reflexões e causa até bons momentos em sua acidez, como quando vemos dois “grávidos” conversarem enquanto esperam o atendimento na clínica onde será feito o procedimento, algo que remete às esquetes surreais propostas pelo grupo britânico de humor, Monty Python.
Inversão dos papéis e a reflexão dura através da ironia do humor |
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