A sétima edição do Cachoeira Doc teve início no último dia 06 de setembro e trouxe uma programação bastante pertinente e repleta de filmes com cunho de lutas pelos direitos das mulheres, pelos direitos dos índios, além da importante necessidade de não se deixar esquecer das barbáries da ditadura militar no Brasil.
Além disso, a curadoria do evento selecionou obras bem atuais para com o período fascista e pós golpe que vivemos, filmes que trazem à memória as manifestações de 2013 e a afirmação de que a luta ainda deve persistir.
Abaixo, textos referentes à primeira Mostra Competitiva de Curtas, ocorrida no dia 07.
* * *
Onze (Ceará, 2016,
26min) De Coletivo Nigéria, Coletivo Zóio e Vez das Comunidades.
Registro marcante de depoimentos de amigos e familiares de
onze jovens inocentes assassinados por policiais em um bairro periférico de
Fortaleza, a onze de novembro de 2015, no massacre que ficou conhecido como
Chacina de Messejana, Onze acerta ao
conseguir transmitir para o espectador toda sensação de inércia que aquelas
pessoas se vêem diante.
Trata-se de um filme visceral não somente pelo seu modo de
captação, como também pelo timing dos realizadores, membros de coletivos da
capital cearense, que estiveram presentes nos dias e meses que se seguiram à
chacina, acompanhando os protestos e o desenlace das investigações.
Podendo facilmente cair na armadilha da manipulação
emocional dos entrevistados, os realizadores optaram por um caminho diverso,
visando captar as falas das pessoas próximas às vitimas sem necessariamente
focar em lágrimas, apesar de ser inevitável que esse resultado seja encontrado
em depoimentos.
No entanto, mesmo quando essa reação é exibida, Onze a equilibra de modo eficiente,
preferindo, por exemplo, respeitar a dor da irmã de um dos jovens mortos,
mantendo seu depoimento não muito longo e contrapondo-o à contundente e sóbria
fala de um pai que, ao exibir o cordão que o filho usava no pescoço no dia da
sua morte, contrapõe a fala cínica de um dos policiais assassinos que afirmou
que o rapaz tinha uma arma. “Isso parece uma arma? Porque, além da roupa do
corpo, essa era a única coisa que meu filho tinha”, observa o senhor. Em seguida,
sua fala torna seu depoimento ainda mais marcante: “Estão matando jovens de
bem. O que será do futuro se os jovens de bem estão sendo mortos?”.
A pergunta se torna ainda mais relevante diante do perfil
burocrata da fala do secretário de Segurança Pública do governo cearense.
Proferido um mês depois da chacina, na escola onde um dos jovens assassinados
estudava, o discurso do homem busca se basear na complexidade das investigações
para justificar a demora na averiguação e punição dos culpados, policiais que
se vingaram pela morte de um colega de farda que estava à paisana e foi vitima
de um assalto na localidade.
Em tempos fascistas como os
atuais, um filme necessário.
Depoimento da namorada de uma vitimas é captado |
Sepulcro do Gato Preto
(São Paulo, 2015, 24min) De Kaneda Asfixia e Frederico Moreira.
A verborragia e o excesso de narração em off, além dos
trechos cuja a inserção de letreiros auto explicativos (e ainda lidos em voz
alta) são opções que terminam por prejudicar o desenvolvimento desse curta, que
tem na supostamente surpreendente mudança de foco narrativo em sua premissa seu
problema inicial.
Aqui, o desaparecimento de um jovem artista grafiteiro na
periferia de São Paulo leva seus amigos a iniciar uma busca pelo rapaz,
seguindo seus últimos passos conhecidos e levando-os até uma abandonada fábrica
de cimento, local onde ele teria ido para desenhar nas paredes.
Desde seu começo, com o próprio narrador a apresentar essa
possibilidade como absurda por conta da distância da tal fábrica para o local
onde ele vivia, o desenvolvimento do filme é comprometido. No entanto,
relevando esse contexto inicial de descoberta, o tema de denúncia de toda uma
comunidade sendo vitima da especulação imobiliária, da ação de grileiros e da
opressão fascista policial torna o seu resultado bem interessante.
A tal fábrica de cimento apresentada no começo vem a ser a
Cimento Portland Perus, maior produtora no mercado nacional, situada na localidade de Perus, SP, e controlada pelo bilionário
investidor J.J. Abdalla (aqui, muito pertinentemente representado por abutres),
que a comprou no começo dos anos 1940, tornando-a uma potência e sofrendo
grande quantidade de processos trabalhistas, o que a levou a fechar quarenta
anos depois, na década de 1980. O curta apresenta uma série de denúncias
embasadas em depoimentos das pessoas que vivem na região e que até hoje lutam
para ter a posse de suas terras.
Com falas marcantes que denotam a brutalidade policial e a
perda de direitos sofrida de modo violento pelos habitantes da região, o curta
encontra seu trilho quando passa a focar justamente nessas denúncias.
Uma pena
que a abordagem não foi mais direta, precisando de um prólogo que envolveu uma
trama logo esquecida.
Além disso, teria sido
pertinente ouvir o lado de lá deste caso. Seria interessante ver encurralados
os supostamente intocáveis herdeiros do império do abutre Abdalla.
Grupo de moradores da comunidade de Perus e sua luta pelo direito às terras |
Quem matou Eloá? (São
Paulo, 2015, 24min) De Lívia Perez.
Talvez o mais impactante e reflexivo curta da primeira
mostra competitiva (algo denotado pelos longos aplausos ao final da sessão), Quem matou Eloá? tem em sua montagem
rápida e narrativa intercalada entre imagens de noticiários, programas
vespertinos e os depoimentos de especialistas um eficiente discurso de denúncia
da violência contra a mulher.
Vitima do mais longo caso de sequestro seguido de cárcere
privado no país, Eloá, uma adolescente de quinze anos, foi mantida presa pelo
namorado, Lindemberg Alves, em outubro de 2008, durante cem horas, sendo
assassinada por ele com um tiro na cabeça e outro na virilha no momento em que
a polícia invadiu o local.
A diretora Lívia Perez cria uma interessante linha de
denúncia ao utilizar os trechos dos programas televisivos que ilustram o modo
desumano e sensacionalista como os canais de TV abordaram o caso, minimizando a
ação criminosa de Lindemberg ao reduzi-la a um simples caso de ciúme e amor não
resolvido e, por vezes, colocando-o no papel de vitima.
Todo o caso foi transmitido ao vivo pelos canais,
colaborando para evidenciar ainda mais a vaidade do assassino, que dava
entrevistas por telefone e se vangloriava por tamanho destaque que recebia da
mídia.
Erros seguidos de erros levaram ao desfecho do desastre na
resolução do caso. A partir de pertinentes depoimentos, são salientados fatos
como a suposta coincidência da invasão da polícia ter acontecido em horário de
grande audiência televisiva; a questão do assassino ter atirado na virilha da
menina, denotando seu comportamento misógino e o perfil irresponsável dos
programas, que ligavam para a casa da vitima no intuito egoísta de conseguir um
furo jornalístico.
Em certo momento, um dos convidados de um programa
vespertino diz esperar que os dois ficassem juntos ao final daquele caso, algo
que confirma justamente a ideia que o documentário denunciou: a de cerceamento
de direitos femininos em detrimento da vontade dominadora do homem.
Ao final, a sensação é de
justamente observar que toda a manipulação televisiva destes mesmos veículos se
tornou algo incessante, sendo casos como o da jovem vitima só mais um capítulo
em tramas que apenas buscam ibope de audiências ignorantes.
Voz das Mulheres Indígenas
(Bahia, 2015, 17min)
Apesar da importância de seu tema e da pertinência de sua
proposta, o curta realizado por mulheres de comunidades indígenas acerca da
presença feminina nos movimentos que buscam garantir os direitos dos seus povos,
peca pelo bombardeio de depoimentos sem necessariamente seguir uma linha
narrativa, algo que torna confusa a assimilação de cada discurso pelo espectador.
Além disso, é perceptível certo amadorismos (algo que não
desmerece sua proposta, mas, sim, sua eficiência) e estrutura batida de
captação de opiniões, com discursos sendo registrados de modo mecânico e não
encontrando em sua montagem uma forma de fluidez que permita um desenvolvimento
de sua mensagem.
Ao terminar a exibição, sabemos se tratar de um tema
importante para o atual contexto de afirmação dos direitos do índio perante a
sociedade (e, ainda mais importante, dos direitos das mulheres indígenas), no
entanto, pouco se absorve de seu contexto.
Depoimentos exibidos de modo não muito fluído acaba gerando confusão |
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