Em 2000, Ed Harris produziu um brilhante filme sobre o pintor expressionista Jackson Pollock. Na película, várias discussões sobre a criação artistica são levantadas. Para além da conturbada vida de Pollock, o que fica é o registro de um artista atormentado, mas com o total domínio de suas telas. Dez anos depois, tive o prazer de assistir ao documentário Música é Perfume, sobre a carreira de Maria Bethânia, e estudar as teorias de Luigi Pareyson sobre a estética do fazer artistico. Um paralelo pôde ser feito sobre esses dois pilares da cultura mudial. O resultado você lê abaixo.
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Em determinado momento da cinebiografia de Jackson Pollock, dirigida e atuada com vigor por Ed Harris, o personagem título responde a uma jornalista quando esta lhe pergunta: “Quando você sabe que acabou a pintura?” Numa réplica rápida e exata em sua elegância contida, Pollock responde: “Quando é que você sabe que acabou de fazer amor?” A jornalista nada tem a acrescentar a pergunta, além de certo rubor desconfortável de sua parte. A esse ponto da película, já conhecemos o artista e a pessoa Jackson Pollock. Já sabemos de seus vícios autodestrutivos; já sabemos de sua dificuldade em se relacionar socialmente, mas, o mais importante: já conhecemos sua genialidade explosiva e impulsiva.
A construção do personagem é feita de forma gradativa. Inicialmente, ele é apresentado como alguém totalmente dependente dos cuidados de terceiros. Seu irmão chega a brigar com a própria esposa por precisar abrigá-lo após mais uma noite de excessos alcoólicos. Jackson parece encarar a realidade da mesma forma que alguém encara suas obras. Pode-se ver nos olhos dele o modo atônito como observa os ambientes onde precisa estar. Desde a galeria da conceituada curadora Peggy Guggenheim, apinhada de admiradores, até as precárias instalações de sua casa de campo, onde decidiu se isolar para fluir em suas pinturas. A introspecção social de Pollock é um modo de se guardar para ser extrovertido perante suas obras em construção. Para poder sobreviver em um mundo onde não se sente bem vindo, somente o amor de uma mulher pôde ajudá-lo durante sua vida de excessos. A artista Lee Krasner cumpriu essa função de forma a não deixá-lo sair dos trilhos. No entanto, há limites mesmo para o amor compreensivo que ela nutria por ele. O decorrer e desfecho da história ilustram isso muito bem.
A proposta deste ensaio é analisar as características de Jackson Pollock e de suas obras junto ao estudo de Luigi Pareyson no que se refere ao processo artístico. A partir desta análise, pode-se encontrar sinais das idéias de Pareyson na vida e arte de Pollock. No seu texto, o autor procura evidenciar a idéia da existência de uma lei da arte. Como funcionaria o processo de composição para um artista? Há alguma regra a se seguir? A obra de arte já pré-existe antes mesmo do ser humano a colocar no papel (ou na tela)? Pareyson levanta uma discussão crucial para o entendimento da arte ao perguntar se a forma da obra de arte existe somente quando o processo está acabado ou se age, também, como formante, ou seja, antes de estar completa. Pollock demonstra bem esse argumento ao ilustrar suas impressões sobre os modernistas europeus. “O que mais impressionou Jackson nos modernos europeus foi seu conceito de que a fonte da arte vem do inconsciente”, afirmou a revista Life em matéria sobre o pintor. Ou seja, a arte está em formação contínua. O artista a descobre no decorrer de sua execução. Uma declaração que ratifica esse fato em relação a Pollock foi feita por ele nessa mesma matéria: “Eu não deixo a imagem carregar a pintura. Se ela se enfia, procuro afastá-la para deixar a pintura vir à tona”.
No entanto, o contraste em suas opiniões e na execução das obras é perceptível quando, em um vídeodocumentario que mostra o processo de composição, o diretor surpreende Pollock (e o irrita profundamente, como percebemos em seu ato posterior) ao orientá-lo que durante a pintura, ele deveria passar mais tempo pensando. A concentração ao criar suas telas só existe nos períodos que antecipam o início do trabalho. Ele pode ficar até três dias apenas olhando para uma tela branca (e escutando as cobranças de Lee por detrás da porta, diga-se), mas, uma vez que o pincel toca o tecido, apenas com a obra completa ele vai parar de se movimentar em frente a mesma, em um transe criativo ininterrupto. Ele sente-se à vontade perante a tela. Paradoxalmente à sua disciplina no ateliê, Pollock é um inapto social capaz de urinar em uma lareira durante uma festa de réveillon e demonstrar sua raiva ao saber que seu irmão irá para outra cidade aumentando o som do rádio e batendo na mesa com fúria. No entanto, sua disciplina diante o quadro em composição é total. É um ambiente de respeito, algo que ele não quer macular.
Um paralelo é feito nesse momento entre as duas formas de arte: a pintura e a música. No documentário Música é Perfume, ouve-se em certo momento Maria Bethânia afirmar que, para ela, o palco é um trapézio sem rede. Um local para se jogar sem pensar em conseqüências. “Não ter intimidade com aquele espaço é um desrespeito”, complementa. São dois artistas que aparecem muito à vontade em seus locais de labuta. Enquanto Pollock desliza em frente às suas telas gigantes, Bethânia mergulha de olhos fechados na música que interpreta. E parecem um casal dançando cada qual em seu ambiente. Com passos exatos e seguros de si. Para a artista, a pessoa, ao cantar, não tem limites ou barreiras. Em certo momento, ela afirma que sua voz não lhe pertence. Ela costuma ouvir suas próprias interpretações e sente uma impressão de que sua voz é só um instrumento. “Uma expressão de Deus. Uma fagulha, uma bobagem”. Impossível não relacionar essa declaração a Jackson Pollock, quando este, ao ouvir as perguntas de Lee, se irrita e se define de forma lúdica.
- Isso não é cubismo, Jackson. Por que você não detalhou a figura em múltiplas vistas? Você só está mostrando um lado – argumenta Lee, diante do trabalho em progresso de Pollock.
- Eu só estou pintando, Lee – responde tentando parecer calmo. Para Pollock, arte não precisa seguir regras. Sua resposta para Lee ilustra muito bem isso.
- Não me diga que você não sabe o que está fazendo. Você está experimentando o surrealismo. Isto é um sonho e mesmo que seja um sonho, ainda é o que você vê! - Lee prossegue com seu argumento.
A afirmação final da esposa do pintor remete diretamente a Pareyson quando este afirma que
“o êxito não pode ser produto do acaso, nem a coerência pode resultar da desordem. Este estado de tateamento e de aventura total é contrário à experiência artística: o decurso do processo artístico é de algum modo orientado, porque o artista , mesmo não possuindo nenhum critério objetivo e mesmo não dispondo de um projeto preestabelecido, está em condições de reconhecer e distinguir, no curso da produção, aquilo que deve cancelar, ou corrigir, ou modificar, e aquilo que, pelo contrário, está bem conseguido e pode considerar-se como definitivo.” (PAREYSON)
- Você não está jogando tinta a esmo sobre a tela. Está pintando algo. Não pode abstrair isso do nada. Só vida. Só da natureza.
- Eu sou a natureza! – responde um impaciente Pollock a mandando terminar aquele “maldito quadro”.
Enquanto ele é a natureza, Bethânia doa sua voz para o criador desta natureza. Uma rima narrativa entre duas obras que é impossível não se fazer.
Essa relação entre artista e obra apresentada por Pareyson e afirmada por Lee Krasner encontram uma paridade quando Maria Bethânia afirma que “cantando, você não tem limites ou barreiras” e é ratificada quando esta elogia a amiga e também cantora, Nana Caimy: “Nana tem um entendimento da musicalidade sem perder a interpretação e o significado da letra. Ela é rara”. Tal declaração comprova uma preocupação não só sentimental com processo artístico, mas também técnico. O talento não existe somente de forma inspiradora, o conhecimento e estudo do meio de criação é imprescindível. Jackson Pollock, em seu desequilíbrio social e perfeição solitária, e Maria Bethânia, com seu modo simples de demonstrar genialidade e humildade, confirmam Pareyson quando este diz que a obra de arte é estimulada no intimo do artista. E, nesse processo, o modo orientado de se criar peças de arte, citado por Pareyson, pode até ter o resultado alcançado por Pollock chamado de “lama”, como insistiu um crítico. Não sem muita surpresa para quem assiste ao filme, esse mesmo “especialista” volta em sua idéia e muda de opinião.
Triste observar o modo como alguém tão talentoso como Jackson desperdiçou a chance de continuar a impressionar o mundo. A letra da canção de Tom Waits, com voz arrasadora e gutural, que encerra o filme sobre a vida do pintor é exata e cruel em sua honestidade: “The world keeps turning”. Sim, o mundo continua a girar. Infelizmente, sem novas criações de um mestre, é preciso frisar.
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