quarta-feira, 23 de março de 2016

A Luneta do Tempo

(Brasil, 2015) Direção: Alceu Valença. Com Irandhir Santos, Hermila Guedes, Hélder Vasconcelos, Ari de Arimateia.


Por João Paulo Barreto

Quando um artista consagrado em outro campo resolve trilhar outras experiências e se arrisca no audiovisual, é comum crer que uma suposta vaidade do sucesso pode ter lhe subido à cabeça e a necessidade primordial de provar-se capaz e talentoso também na direção cinematográfica lhe impedirá de alcançar este intento.

Felizmente, não é o caso aqui. Com poucos, porém inofensivos vícios na direção, como o constante uso de fades entre um corte e outro, ou a opção de utilizar o banal efeito de câmera reversa para ilustrar determinado clímax do filme, Alceu Valença, distante de grandes ambições, entregou em seu resultado final um trabalho bem amarrado além de uma pequena, mas não menos bela homenagem a diversos elementos não só da cultura nordestina, bem como da circense.

Do mesmo modo que Selton Mello o fez em seu O Palhaço, o cantor consegue criar em seu longa de estreia uma tenra homenagem a uma cultura cuja força se encontra no simples, no lúdico, naquilo que, para realmente se perceber, se faz necessário uma observação cálida e uma valorização atenta do imaginário popular. Quando se resolve homenagear o circo, há um risco de se cair no preciosismo. Há um risco de acabar se copiando mestres como Fellini, cujas obras Os Palhaços e A Estrada da Vida conseguiram criar símbolos precisos do que é viver naquela itinerância.

O próprio Alceu e o encontro trágico entre o real e o imaginário no picadeiro
Alceu Valença, no entanto, preferiu ir além. Em sua mistura, ele trouxe um emaranhado de símbolos da cultura local. No seu circo comandado por europeus, ele inseriu a literatura de cordel. A partir de tão vasto universo, o leque de possibilidades de seu texto se estendeu. E, como um profundo conhecedor de sua região natal e somando dois tão intrínsecos elementos, conseguiu, em A Luneta do Tempo, criar um tributo ao que se convencionou chamar de cancioneiro popular nordestino. E, tenha certeza, isso não é simples.

Ao inserir nesta mistura a história de Lampião, Maria Bonita e seu bando de cangaceiros, mais um símbolo desse folclore real se soma. Equilibrando a tragicidade da história de seus protagonistas com a riqueza do que se encontra nos causos contados em cada birosca representada pelo filme, Alceu Valença conseguiu uma proeza: a de exibir a monstruosidade dos atos de ambos os lados, seguidores da lei e dissidentes, sem necessariamente apontar culpados.

Sim, sabemos das atrocidades cometidas por Virgulino Ferreira (cuja brilhante escolha de seu interprete, Irandhir Santos, reflete a intensidade da performance) e seus cúmplices. Sim, sabemos da vilania com que o governo de Vargas e, subsequentemente, sua polícia tratava o povo do nordeste à época. Mas, aqui, não cabe encaixar nenhum dos dois lados como mocinhos ou como bandidos. O que coube ao roteiro de Valença foi utilizar este pano de fundo como o elemento ideal para homenagear a cultura de um tempo que pode se perder.

Maria Bonita e Lampião observam o tempo de suas vidas

E é justamente disso que se trata. De uma simples e bem sucedida homenagem. No melhor uso da palavra, saudosista. Mas eu não seria ingênuo em classificar o tempo do cangaço como saudosista. Ao classificar a obra assim, refiro-me apenas, como já citei antes, ao impacto de seu simbolismo junto às pessoas. De um período que, somado à presença de outros ícones como Luis Gonzaga, encontra seu lugar juntamente onde merece estar: no imaginário de seu povo. 

Sem obras como A Luneta do Tempo, de fato, tais símbolos de um rico e sofrido nordeste correm, infelizmente, o risco de se perder nas mesmas lentes que Lampião usou para observar seu triste e trágico passado.

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