sábado, 25 de abril de 2020

Moraes Moreira e os Filhos de João | Papo com Henrique Dantas


“Moraes Moreira é todo um país” 

Em 2009, Henrique Dantas e Moraes Moreira no Festival de Brasília. Foto: Aline Arruda

TRIBUTO No despertar doloroso da perda do cantor, compositor e amigo pessoal, cineasta Henrique Dantas, que levou a história dos Novos Baianos aos cinemas, relembra sua amizade com o poeta

Por João Paulo Barreto

“De alegria cantar, porque sei que a dor não tem lugar permanente no coração de ninguém. De ninguém.” Foi com a citação desse verso de Sempre Cantando, clássico de Moraes Moreira lançado em 1975, que comecei a conversar com o cineasta Henrique Dantas, diretor do filme Filhos de João – O Admirável Mundo Novo Baiano, documentário sobre a banda pilar da Música Popular Brasileira, lançado em 2009 e disponibilizado gratuitamente na plataforma Looke (www.looke.com.br). Com o consolo dessa esperança que a letra traz ao acordar pesaroso da perda de Moraes Moreira, revi o filme de Henrique e conversei com o realizador da obra. Na perda do amigo e nas lembranças da produção que levou onze anos para se completar, entre diversos depoimentos dos integrantes e de pessoas que cercaram aqueles filhos de João, Henrique Dantas tinha em sua voz o pesar recente. No entanto, a lembrança da energia positiva de Moraes levou à frente aquele nosso papo.

“Moraes falou tudo através das músicas dele. Eu estava lendo aqui as nossas mensagens, mas não tive coragem de ouvir os áudios que ele me mandou. Aí me deparei com algo que mostrava muito dessa humildade que ele tinha. Ele me perguntou o que eu achava de Ser Tão, o disco dele. Imagine! (risos) Quem sou eu pra achar alguma coisa sobre o que Moraes compôs. Isso é algo muito doido”, relembra Henrique. Muito dessa generosidade de Moraes fica perceptível no processo de criação de Filhos de João. Inicialmente sem vontade de participar, de falar sobre a sua antiga banda, Moraes acabou sendo convencido por Henrique através de uma identificação mútua entre os dois baianos. Dessa identificação, uma amizade surgiu e Moraes topou participar do documentário. “A utopia dos Novos Baianos é algo que sempre me cativou. Passei muito tempo querendo viver em uma comunidade, do mesmo modo que eles viveram. Quando conheci a sua história, a utopia deles passou a ser a minha utopia, também. É como aquilo que falava o Neruda: quando você escreve uma poesia, ela passa a ser de quem lê”, cita.

Ao lado de Baby Consuelo, ainda nos anos 1970

“SÃO TODOS FILHOS DE JOÃO”

Na criação do documentário, mais de uma década se passou. A cada depoimento captado, uma identidade de um artista que surgiu junto com duas das obras pilares do cinema baiano, Caveira My Friend e Meteorango Kid, que tinham músicas daqueles que viriam a se tornar o fenômeno Os Novos Baianos, foi sendo registrada por Henrique. Libertário e fiel a uma vontade deixar sua marca artística no mundo, Antonio Carlos Moraes Pires contou a Henrique que deixou o emprego que tinha, aos 20 anos de idade, no promissor Banco do Estado da Bahia, porque exigiram que ele deveria cortar o cabelo. “Moraes era corajoso. Pediu demissão do banco naquele momento. Vindo do interior, tendo que pagar pensão pra morar em Salvador, o cara larga uma dessa. Isso porque ele sabia que iria virar um país. Ele tinha certeza disso. Da força dele quanto artista. E eu acho que isso é algo indispensável. E não é a prepotência, não. Mas, sim, a crença calada em seu próprio talento”, define Dantas.

No filme, essa ideia utópica frisada por Henrique é trazida pela vida em conjunto da banda, que, primeiro, morou em um apartamento no Rio de Janeiro, local onde criaram um grande entrosamento. Lá, receberam a visita de João Gilberto que lhes trouxe uma relação mais próxima com o samba. Dessa influência, surgiu Acabou Chorare, álbum que imortalizou a banda. No apadrinhamento de João Gilberto, uma relação de paternidade citada por vários dos entrevistados para o filme, principalmente Tom Zé e o cineasta Orlando Senna. “Havia um problema em usar o nome Os Novos Baianos como título do filme, que iria se chamar Novos Baianos – Retrato de um Brasil Musical. Mas várias pessoas com quem eu conversava diziam deter os direitos do nome. Eu não ia usar, pois ia acabar sendo processado por cinco lados diferentes”, diz, entre sorrisos, Henrique Dantas. Nas falas de Tom Zé e de Orlando Senna, essa relação da banda com João Gilberto se evidencia. “Lembro de comentar na época com o (cineasta) Caio Vecchio ‘olha, rapaz, para mim, ali são todos filhos de João’. E foi quando esse conceito para o nome do filme surgiu”, relembra Dantas.

Poster do filme de Henrique Dantas

UTOPIA E ALEGRIA

No mais recente filme de Henrique Dantas, Dorivando Saravá – O Preto que Virou Mar, exibido ano passado no Festival de Brasília, Moraes Moreira aparece para um depoimento acerca da lenda de Caymmi. “Eu me lembro que falei com ele na ocasião sobre o filme que estou fazendo sobre o cinema udigrudi baiano e disse que ia entrevistá-lo. E a ideia de fazer um filme sobre ele, sobre Moraes, também surgia em nossas conversas. Eu achava que Moares ia ser tão eterno. Juro a você que eu não esperava que ele morresse tão cedo. Dia nenhum. Por nada. Se um dia eu fizer um filme sobre ele, vou transformar Moraes em um país. Porque eu acho que ele deveria ser chamado assim. Deveria haver um país chamado Moraes Moreira”, declara o cineasta.

No último encontro, entrevista para filme sobre Caymmi. Foto: Luciana Queiroz

Através de um artista que nos trouxe tanto, a perda dele em um momento tão triste e sombrio do Brasil não deixa de ser pontuada por Dantas. E seu legado, também. “Moraes é um cara que me deu de presente duas coisas: a utopia dos Novos Baianos e a Alegria como modo de viver. Ele me deu duas coisas fundamentais e que são minhas. E não tem período ruim, não tem período fascista nenhum que tome isso de mim”, finaliza Henrique.

O poeta cumpre sua trajetória com esmero.


* Texto originalmente publicado no Jornal A Tarde, dia 26/04/2020


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