quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Lixo Extraordinário

(Waste Land, Inglaterra, Brasil, 2010) Direção: Lucy Walker. Com Vik Muniz. Documentário.



Tião é catador de material reciclável. Como ele mesmo frisa, “lixo é aquilo que a gente descarta e que não tem mais utilidade alguma”. Fundou uma associação voltada para os catadores que visa uma melhoria para a vida daquela categoria. Isis perdeu seu filho para uma pneumonia aguda e afirma ter perdido o rumo de sua vida após esse fato trágico. Ela também vive do lucro alcançado catando material reciclável no maior aterro sanitário do mundo, o de Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro. Zumbi perdeu pai e mãe bem jovem. Começou a viver do que conseguia no aterro a partir dos nove anos de idade, quando passou a acompanhar a mãe na peregrinação diária no local. Zumbi sofreu um acidente de trabalho ao ser esmagado por um carregamento de lixo que um caminhão de coleta despejou no local. Não morreu por muito pouco, já que quebrou perna, braço, costela e precisou de várias transfusões de sangue. Sangue doado pelos próprios colegas de trabalho no aterro. Hoje, ele até brinca que o estoque de sangue do hospital ficou bem abastecido por causa dele. Irmã costumava ser “cozinheira de forno e fogão”, como ela mesma gosta de dizer. Hoje, alimenta as bocas famintas do aterro com tudo que o lixo pode trazer e que ela possa cozinhar. Enquanto mexe na panela um apetitoso ensopado, brinca que de vez em quando aparecem “umas carnes bonitas por lá” e que aproveita pra fazer um assado para o pessoal. É esse tipo de comportamento que move Lixo Extraordinário, filme da cineasta Lucy Walker e co-dirigido pelo brasileiro João Jardim. Essa solidariedade e união que aquelas pessoas demonstram entre si acabam por ser o maior foco deste contundente e eficaz documentário que, de inicio, para mim, pareceu servir como uma vitrine individual para o trabalho do competente artista plástico brasileiro, Vik Muniz, mas que, ao final de seus breves 90 minutos, demonstra-se como uma genuína vontade de transformar a vida daqueles indivíduos.



Isis (d): sorriso esconde uma realidade traumática e sofrida


Famoso por criar peças artísticas a partir de materiais descartáveis e alimentos (uma de suas mais famosas obras é uma reprodução da Mona Lisa de Da Vinci feita com geléia), Muniz inicia o documentário explicando sua intenção de passar três anos trabalhando com as pessoas que vivem no aterro de Jardim Gramacho para poder reproduzir imagens fotografadas por ele em tamanhos ampliados. O detalhe é que as imagens das pessoas serão recriadas a partir do lixo encontrado no local. Uma proposta que, ao ser explicada aos trabalhadores de Gramacho, causa estranhamento, mas que cativa a todos, uma vez que, com os depoimentos de vida de cada um, percebemos que qualquer mudança de horizonte daquele mundo cercado por urubus e doenças será bem vinda. O trabalho de Muniz acaba ficando em segundo plano perante a extraordinária história de vida daquelas pessoas. Com os depoimentos captados pela câmera de Walker, percebemos o deslumbramento de Tião ao descobrir um mundo que ele não conhecia ao achar exemplares de Nietzsche e Maquiavel no lixo e ter o cuidado de levá-los para casa e colocá-los para secar atrás da geladeira. É esse comportamento e vontade de mudar que impele Tião a criar a Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Jardim Gramacho (ACAMJG), organização que conseguiu trazer saneamento básico para o local e que contribui para um melhor desempenho dos trabalhadores da região.



Tião posa como Marat na imagem que o definirá

O foco do filme divide-se entre a história de vida daquelas pessoas fascinantes e o desenvolvimento das belas peças de Muniz. Com a execução das obras sendo realizada por todos, é tocante observar o orgulho nos olhos dos catadores quando finalmente conseguem se ver nos retratos construídos. Os depoimentos de cada um deles emociona justamente por trazer uma autenticidade ao longa, já que, trajetórias como aquelas, tendem a ser utilizadas de forma gratuita por diretores oportunistas. Não é caso de Walker, que soube mesclar os relatos ao desenvolvimento da narrativa de modo natural e orgânico. Confesso ter sido difícil segurar as lágrimas ao observar Tião em Londres, um mundo que ele nunca sonhara ser possível conhecer, vendo um quadro cujo personagem principal é ele mesmo ser vendido por cem mil reais, quantia que será revertida para o desenvolvimento da organização que ele criara e que havia sido desvalorizada por todos. Um paralelo dessas premonições furadas a respeito do projeto de Tião pode ser feito ao depoimento do próprio Vik Muniz, quando este afirma ter sido taxado como um futuro fracassado pelo pai, quando afirmou querer ser um artista plástico.



Visionário: Vik Muniz observa a matéria prima de sua obra
O filme utiliza artifícios eficazes para demonstrar o desenvolvimento das obras no galpão onde Muniz as executa, como a aceleração da imagem de modo a mostrar como a confecção das peças surge do nada para um resultado perfeito; belas panorâmicas ao sair de planos fechados nos caminhões que chegam ao aterro e são aguardados ansiosamente pelos catadores, e imagens aéreas para contemplar a imensidão absurda daquele lugar. Além disso, as imagens noturnas do lugar utilizam uma fotografia belíssima de Dudu Miranda que colabora para ilustrar o sufocante e inóspito ambiente que, mesmo sem a luz do sol, os catadores precisam enfrentar para retirar o próprio sustento. Tudo isso junto a (mais uma) eficaz trilha sonora de Moby.

É com alegria que observamos, já nos créditos finais, as mudanças que o projeto trouxe para as vidas de Tião, Isis, Irmã, Zumbi e companhia. Às lágrimas, Tião liga para a mãe direto de Londres para dizer o quanto o quadro que ele ajudou a construir trará de beneficio financeiro para todos aqueles que a associação, que um dia julgaram como um plano sem sentido, ajudou e continuará ajudando. Longe da ingenuidade, afinal é fácil perceber todos os interesses capitalistas por trás de qualquer produção cinematográfica, meus sinceros agradecimentos a Vik Muniz por ajudar-me, mesmo sem saber, a recuperar minha fé nas boas ações.

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