Por João Paulo Barreto
Depois da Chuva, primeiro
longa metragem dos cineastas Cláudio Marques e Marília Hughes, estreou essa
semana. Justamente no primeiro mês que o Brasil se vê livre de um dos últimos
tumores da época que o longa aborda. José Ribamar Sarney, um dos suportes do
golpe militar de 1964, e símbolo da continuidade política imposta pelo regime
na abertura de vinte anos depois, saiu da cena pública ao não se reeleger para
o senado em 2014.
No longa, a figura oportunista de
Sarney está representada pelo seu homônimo, Ribamar (Victor Corujeira), personagem
que denota em sua personalidade ainda um pouco da inocência juvenil, mas cujo
interesse pernicioso de ascensão social decorrente da influência de amizades
poderosas já é notável.
“É o nascimento de um corrupto”,
pontua o co-diretor Cláudio Marques. “O outro que vemos é o Paulo (Ricardo
Pisani), nossa homenagem ao Paulo Maluf. Você observa que o Paulo é mais
pesado, autoritário. Uma caricatura em cena. Isso ficou mais evidente. Ele já é
um corrupto. O Ribamar é mais sutil. Vai se tornar aos poucos o corrupto que
conhecemos”, explica.
Ribamar e Paulo tentam ganhar os votos dos alunos. Foto: Agnes Cajaiba |
São jovens estudantes
interessados na criação de um grêmio estudantil no colégio em 1984, período
marcado pelo fim da ditadura militar no Brasil. Caio (Pedro Maia) é um
dissidente dessa turma, mas um dos poucos com a real percepção do que realmente
significa aquele momento histórico. Na Salvador daquele ano marcante, passa os seus
dias com os dois amigos mais velhos, Tales (Talis Castro) e Sara (Paula
Carneiro), influências poderosas na sua formação de ideias e visão de mundo. A
desilusão, no entanto, é palpável. A anarquia como pilar de vida se choca
diretamente com a falta de esperança naquele país que surge.
Vendo o filme pela segunda vez na
pré-estreia dessa semana (a primeira foi em 2013, logo após os prêmios
alcançados no Festival de Brasília), foi palpável a percepção do impacto dessa
obra para o atual contexto nacional. Após as manifestações que marcaram o país há
um ano e meio, diversos estados brasileiros optaram por manter os mesmos
representantes políticos que os levaram a protestar contra. É desse tipo de
desilusão que o filme trata. Mesmo após a abertura, durante os últimos 30 anos,
estivemos presos em um ciclo vicioso de trocas de cargos por figuras de uma
mesma estirpe. Personagens principais (e suas variações) de uma fase sombria
pela qual o Brasil passou.
Nessa desilusão vive o personagem
Tales, mentor e amigo do protagonista Caio. Em sua personalidade, está uma
vontade de mudança, uma revolta escancarada pela percepção de que aquela farsa
da abertura política não passa realmente disso: uma farsa. Os poderosos que vão
mexer as marionetes são os mesmos. E Tales sabe disso. Sua figura séria, de
olhar soturno e comportamento introspectivo reflete esse conhecimento. Mas ele
luta para manter um foco no poder da indignação. Na ação popular. Com os dois
amigos, invade a faixa de rádio com uma transmissão pirata que esclarece a
ilusão que aquele novo cenário representa e busca distribuir na escola de Caio
o zine “Inimigo do Rei”, falando justamente sobre essa “Demencracia” que o
garoto abordou em sua redação censurada com uma nota zero.
Talis Castro em cena de Depois da Chuva. Foto: Agnes Cajaíba |
Talis Castro afirma ser bem
diferente do seu personagem quase homônimo e que, por isso, sua construção foi
um processo bem desafiador. "Primeiro pela carga dramática, segundo pela
sua representatividade dentro da trama e terceiro pela linguagem do cinema, a
qual não estava familiarizado”, explica o jovem ator, que tem em Depois da
Chuva sua estreia no cinema. No entanto, acreditar na mudança é algo que os
dois têm em comum “O que realmente me aproxima dele é o credo nos movimentos
coletivos, na força popular enquanto organização política e que as mudanças
estão nas pequenas atitudes, individuais, do dia-a-dia", complementa.
Oriundo dos palcos, Talis caminha
bem em diversos estilos, como a comédia,o stand up, o drama e o teatro infantil.
Convidado pelos diretores Cláudio Marques e Marília Hughes para o papel em Depois
da Chuva, Talis afirma que estrear nas telas foi a realização de um sonho e
que pretende continuar a se aventurar tanto no tablado quanto nas telas. “Minha
prioridade é atuar. O teatro foi o meu primeiro contato com esta arte, e adoro
fazer. Nele encontrei maiores oportunidades e consegui construir uma carreira
bacana que me possibilitou dialogar com diversas linguagens”, afirma.
Sobre a aprendizagem constante na
atuação, tanto no teatro quanto no audiovisual, o ator afirma ter se apaixonado
ainda mais pelo cinema após o trabalho com os diretores. “Eles sabiam
exatamente o que queriam em termos de atuação, e nos encaminhavam muito bem
para este ‘tom’ que o filme tem. São muito atenciosos, generosos e souberam
conduzir tudo com maestria, nos dando liberdade para criar e sempre dando o
caminho a seguir. Espero encontrá-los em breve em mais uma produção”, diz
Talis.
O ator lamenta que as
oportunidades na área sejam poucas em Salvador, mas garante que, mesmo tendo
uma carreira construída nos palcos, busca outras chances no campo do
audiovisual, tanto no cinema quanto na TV. “Espero que o filme abra caminhos
para novos trabalhos. E ouso dizer que, mais para frente, quero dirigir cinema.”,
surpreende.
Os diretores durante as gravações. Foto: Agnes Cajaíba |
Gravado em 2012, Depois da
Chuva correu mais de 30 festivais em 14 países, demonstrando uma estratégia
de divulgação arriscada, mas que, no final, provou-se certeira. “Foi um
planejamento, sim, mas muito arriscado. Já imaginou se o filme não entrasse
nessa quantidade de festivais? Era um risco. Mas funcionou”, explica o
co-diretor Cláudio Marques. “Os festivais que nós mais queríamos, nós conseguimos.
Queríamos estrear em Brasília, estreamos. Queríamos estrear no festival de
Rotterdam, conseguimos. Argentina, circuito de festivais nos Estados Unidos,
cinemateca de Paris, enfim, foi arriscado, mas conseguimos”, finaliza.
Alcançando uma distribuição
nacional que, apesar de não ter o número de salas que as bobagens produzidas
pela Globo Filmes alcança, Depois da Chuva chega a diversas capitais do
Brasil com uma bagagem grande, fruto justamente dessa grande temporada de
festivais mundo afora. O tema distribuição, inclusive, foi um dos pontos
abordados pelo cineasta ao falar dos percalços na luta para lançar o longa. “Adhemar
Oliveira, meu sócio aqui no Espaço Itaú de Cinema, foi a primeira pessoa para
quem eu mostrei o filme. Ele é o único cara que faz política de exibição para o
filme nacional no Brasil. Ele é distribuidor e exibidor. A quantidade de filmes
nacionais que ele faz questão de sustentar em cartaz é incrível. Bancando até
quando não tem público”, explica Cláudio, que foi responsável pela abertura do
então Espaço Unibanco de Cinema em 2008, um local histórico por abrigar o Cine
Glauber Rocha (antigo Guarani) e que estava fadado a se tornar uma igreja
evangélica.
Para o cineasta, a presença de
Adhemar foi crucial nesse lançamento e na sustentação de diversos filmes
nacionais em cartaz. “Lembro-me de ter mostrado o Depois da Chuva para
ele e a frase que ele disse ao terminar o longa foi incrível: ‘Cláudio, seu
filme me fez ter saudade de ser jovem’”, lembra o cineasta e exibidor. Mesmo
contando com essa parceria, Cláudio Marques lamenta o fato de que, em outras
capitais, a dificuldade de conseguir salas foi imensa. “No Rio de Janeiro, por
exemplo, nós só conseguimos a sala do Adhemar”, explica.
Inovando por exibir um cinema que foge do clichê usual com o qual a Bahia é ambientada no audiovisual
e, o mais importante, trazendo seu foco para uma época pouco abordada pelo
cinema nacional, Depois da Chuva representa um frescor para a
filmografia brasileira, uma força jovem que, da mesma forma que Tales e Caio,
batalham por uma mudança de paradigmas e fogem da mesmice.
Em um Brasil que parece nunca
alcançar a reforma tão almejada em seu cenário político, a ocasião de seu
lançamento acaba sendo a melhor possível, quando o país se livra de um dos seus
cânceres no Senado em Brasília. Ainda restam vários, mas um dos mais antigos já
foi extirpado.
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