terça-feira, 13 de setembro de 2016

Cachoeira Doc 2016 - Mostra Competitiva VI


Procura-se Irenice (São Paulo, 2016, 25min) Direção: Marco Escrivão e Thiago B. Mendonça.

O ano de 2016 trouxe para o Brasil as Olimpíadas. Seria uma excelente oportunidade para o Comitê organizador dos jogos fazer justiça à figura de Irenice Rodrigues, a corredora recordista que representaria o Brasil no evento que, em 1968, foi realizado no México. Infelizmente, a “atleta apagada” da história continuaria com essa alcunha se não fosse pelo obrigatório curta documentário dirigido por Marco Escrivão e Thiago B. Mendonça.

À frente do seu tempo por conta de suas opiniões decididas e postura de não se rebaixar diante do autoritarismo dos militares, Irenice é trazida de volta à vida através dos depoimentos de pessoas que a conheceram à época em que seus recordes na pista de atletismo eram constantes. Além disso, a dupla de diretores insere a performance da bailarina e atriz Kanzelumuka, que simboliza de modo eficaz a presença da atleta, cuja mordaça simbólica é apresentada, aqui, de forma real, e a bandeira para qual ela tanto queria prestar a reverência do alto de um pódio, acaba sendo a mesma que a amarra, a impedindo de correr.


Vitima de um racismo escancarado no período em que treinava, sendo diversas vezes questionada acerca de sua presença nos locais como alguém que, ao invés de reconhecida como uma atleta vencedora, seria empregada doméstica de alguma família abastada que estaria presente, Irenice era uma vitima de seu país, um Brasil que naufragava diante de um poderio covarde e autoritário, ao invés de preservar seus ícones mais representativos.

“As pessoas só atiram pedra na árvore que dá fruto”, afirma uma das fontes entrevistadas, explicando que os argumentos de Irenice acerca do cenário de influência maléfica do militarismo no esporte e sobre o modo vexatório como ela era tratada no seu meio, dentre outros pontos pertinentemente levantados, eram argumentos válidos, que, em caso de reverberações, daria, sim, frutos. Então, o apedrejamento oriundo dos poderosos não tardou.

A mordaça e a bandeira que se tornaram sua prisão
“A história da Irenice é uma história de uma punição. É a história de uma segregação. De uma exclusão. É a história de um apagamento”, frisa uma das fontes na fala que fecha de modo marcante a obra.

A definição perfeita de uma saga que merecia esse registro trazido à tona no documentário.

*            *          *


(A Noite Escura da Alma, Bahia, 2015, 85min) Direção: Henrique Dantas.

Abordando de forma precursora a história da ditadura militar na Bahia, A Noite Escura da Alma, de Henrique Dantas, é uma obra que, mais do que a reflexão, traz ao espectador, principalmente aos nascidos ou que vivem na Bahia há muito tempo, um sentimento de revolta para com todos os mandos e desmandos que o estado sofreu durante os anos em que viveu sob a sombra do Carlismo.

Reafirmando o fato de que a arte é uma das armas mais poderosas contra a opressão, o diretor Henrique Dantas acerta ao utilizar performances de atores no intuito de denotar a brutalidade dos métodos da ditadura e as ações dos torturadores. E isso sem a necessidade de ser panfletário em seu discurso ou gratuito em suas imagens e no modo como a mensagem é passada à platéia.


“Quando você se propõe a contar uma história da ditadura militar na Bahia, uma história que você não possui uma imagem sequer, uma vez que tudo foi apagado, tudo se torna mais difícil”, explica Henrique. “Você não encontra nada nos arquivos de televisão daqui da Bahia. Só se acha jornais, e, ainda assim, o que se permitia que saísse impresso na ocasião”, complementa o cineasta. Acaba que, A Noite Escura da Alma se torna um filme no qual toda a indignação e ojeriza que ele gera contra os representantes políticos da época surgem não através de fotogramas de arquivo, mas, sim, através de palavras. Em discursos pesados vindo de vozes inicialmente sem rosto e oriundas de pessoas que passaram pelo terror, o longa demonstra sua força. São depoimentos fortes, que constroem a narrativa para o espectador, o fazendo mergulhar nos mesmos porões onde aqueles cidadãos estiveram.

Na presença de personagens como Juca Ferreira, Lucia Murat, Emiliano José, Theodomiro dos Santos, Carlos Sarno, Haroldo Lima, dentre outros, a voz dos que sobreviveram ao terror daquele período ecoa pelas paredes do Forte do Barbalho, local oportunamente escolhido pelo diretor para captar os depoimentos. Era no lugar onde se concentrava a maioria das ações de repressão militar, onde as torturas aconteciam e assassinatos eram cometidos. O peso da captação daquelas entrevistas no Forte acaba por contribuir para a atmosfera do filme, mas, sem necessariamente explorar de modo displicente o emocional das suas fontes.

O silêncio imposto por um poder que controlava tudo 
Fortes em suas palavras, as vozes captadas por Henrique Dantas trazem fatos relevantes para nossa história, como a questão levantada por Theodomiro dos Santos, um dos presos à época e protagonista de uma das mais famosas fugas da penitenciaria Lemos de Brito. Em um dos trechos, Theodomiro aborda a questão da mão pesada do então governador (colocado no posto pelo ditador Emílio Garrastazu Médici) Antonio Carlos Magalhães, cuja perseguição deflagrada a qualquer um contra seu governo era notoriamente violenta e o fato de que boa parte da responsabilidade pela ausência de memórias relacionadas ao período ditatorial na Bahia se deve às ações perpetradas por ele.

Em uma época em que seu herdeiro se esforça para desvincular sua imagem à notória e contumaz truculência que se tornou marca de sua família, esse ponto de abordagem torna A Noite Escura da Alma ainda mais essencial. “Eu me lembro de ter ficado inseguro de inserir tal trecho no filme.”, afirma o diretor Henrique Dantas. “Na ocasião, eu liguei para o Theodomiro e falei: ‘Theodomiro, o filme está pronto. Mas tem uma parada que você fala e que coloca o ACM como assassino. E aí, meu velho?’”, continua Henrique. A resposta de Theodomiro é uma declaração que simboliza não somente sua postura decidida, mas, também, uma resposta contra os anos de silêncio forçado em que vivemos aqui na Bahia. “Ele chegou e disse: ‘Henrique, eu sou que nem índio. O que eu cuspo, eu não boto pra dentro de novo, não’. Eu me lembro que cheguei a me emocionar na ocasião”, recorda-se Dantas.

O diretor Henrique Dantas (Foto:Jackson Romanelli. Divulgação)
Trata-se de uma obra que gera no público uma reflexão urgente acerca do fato de que a Bahia é uma terra vitima da alegria, fato levantado por Dantas na sua narração inserida no começo do filme. Onde os problemas sociais acabam sendo irresponsavelmente escondidos por políticos que usam o carnaval e a alcunha que esse lugar possui como um fator de influência para deixar, por ainda mais tempo, a venda nos olhos de seu povo. Iludido por um suposto estado constante de felicidade (A terra da alegria, como diz a propaganda oficial), esse povo não se permite apurar seu senso crítico, deixando-se levar por uma memória curta ou apagada por interesses mesquinhos.

“Meu filme não tem a pretensão de colocar as pessoas dentro da memória, mas, ao menos, ele as risca, sabe? Como aquela riscada que você faz do seu nome e o de sua namorada em um coração, desenhado no muro de sua casa. É um pouco disso que meu filme faz. Ele pega aquela muro ali no meio do caminho, desenha um coração sangrando e coloca o nome dessas pessoas dentro”, afirma Henrique Dantas.

De fato, esse coração sangrando aqui na Bahia precisava ser trazido à tona, principalmente em um período como o atual. Um filme essencial.
                                                                    

Um comentário:

  1. Obrigado João Paulo pelas palavras. Depois de 9 meses circulando em festivais, ás vezes fico com a impressão que nem mesmo o cinema brasileiro tem disposição de olhar para esse período, parece que mesmo a memória não se interessa por ele. E acho estranha a carreira desse filme em festivais no Brasil, meio que deslocado para lugares de invisibilidade. Mas é isso, como disse Wally Salomão, a memória é uma ilha de edição e a minha tem editado essas coisas...

    ResponderExcluir