Após quarenta anos, o veterano Sérgio Ricardo
reassume a
direção de cinema
Artista multifacetado que se envereda com o mesmo esmero
pela pintura, composição musical, literatura e, agora, após um hiato de quase
quarenta e cinco anos, de volta ao cinema, o octogenário Sérgio Ricardo
apresentou na edição 2018 da Mostra de Cinema de Tiradentes seu mais recente
filme, Bandeira de Retalhos. Baseado
na história real de resistência dos moradores do Vidigal, o longa aborda a saga
das pessoas que, no final dos anos 1970, se rebelaram contra as ordens do
governo do Rio de Janeiro que visavam a derrubada dos seus barracos. A
justificativa era por conta de uma suposta localização em zona de risco de
desabamento. Porém, logo descobriu-se se tratar de um golpe da especulação
imobiliária.
O longa é definido pelo próprio Sérgio como “cinema de
mutirão”. “Esse é um projeto que eu possuía desde a década de 1970. Nunca tive
recursos para filmá-lo. Na verdade, no começo do anos 1990, cheguei a ter a
possibilidade de realizá-lo, mas o infeliz do presidente da República na época
acabou com a Embrafilme”, relembra Sérgio. Foram precisos mais 27 anos para que
o trabalho saísse do papel. Mais do que isso, foi necessária a força de um
mutirão de pessoas, como bem classifica o diretor, para que isso acontecesse. A
produção foi orçada em três milhões de reais. No entanto, a equipe conseguiu a façanha
de realizá-lo com apenas 100 mil reais, o que, para muitos projetos, não
custeia nem a alimentação durante períodos de filmagem.
A produção foi realizada a partir da integração da ONG e
grupo de teatro Nós do Morro, oriundo
do próprio Vidigal (a história chegou a ser representada nos palcos, inclusive).
Todos os atores, além de participar de entrarem no filme como elenco,
participaram do processo de construção dos cenários, composto por casas de
madeira a representar a favela de quarenta anos atrás, sendo que muito dos
itens utilizados na construção das paredes eram alugados. “Nós tínhamos que ter
o maior cuidado com as madeiras, pois além de precisar montar e remontar as
casas, já que os materiais eram os mesmos, ainda tínhamos que devolver após o
uso”, relembra o cineasta entre sorrisos. Principal apoiador do projeto, o
Canal Brasil foi quem entrou na empreitada com o suporte dos cem mil reais.
Quantias menores forma levantadas através de financiamento coletivo, que contou
com o apoio de nomes como Chico Buarque e do cineasta Beto Brant, entre outros.
O cineasta durante debate na Mostra Tiradentes 2018 |
“UM SR. TALENTO”
Sérgio Ricardo, para a geração mais nova, pode soar como um
nome não muito conhecido. Seu último longa de ficção como diretor foi A Noite do Espantalho, de 1974. No entanto, esse senhor de 85 anos teve
sua trajetória de vida mesclada com a da cultura de resistência do Brasil. Iniciou
sua carreira como músico em São Paulo, mas foi na noite carioca que se firmou
como pianista e compositor, tocando com diversos nomes da Bossa Nova. Durante
os anos 1960, filmou seu primeiro curta-metragem, O Menino da Calça Branca. Em 1964, seu longa de estreia, Esse Mundo é Meu, foi lançado durante os
conflitos de rua decorrentes do golpe militar. No mesmo ano, assinou a
emblemática trilha sonora de Deus e o
Diabo na Terra do Sol, iniciando uma parceria com Glauber Rocha e que
continuaria com o marco de 1967, Terra em
Transe. Além de participar das trilhas de marcos do cinema, Sérgio marcou
presença nos populares festivais de música, dentre eles o da Record, onde,
diante das vaias que o impediram de cantar, destruiu o violão no chão do palco,
atirando-o contra a plateia, momento dos mais simbólicos da música nacional e
registrado no documentário Uma Noite em
67.
CINEMA NOVO
Parceiro de Glauber nos filmes citados, Sérgio mantém uma
proximidade com os representantes do Cinema Novo. Dentre eles, o baiano Antonio
Pitanga, cuja atuação dirigiu em Esse
Mundo é Meu (1964) e Juliana do Amor
Perdido (1968). A parceria voltou a acontecer agora em 2017. “O Pitanga é, antes de tudo, um grande
amigo. Além de um talento assombroso. Sempre penso nele em qualquer projeto que
me envolvo. E sei que se Glauber estivesse vivo, faria o mesmo”, afirma. Sobre o movimento cinematográfico, Sérgio
explica ser fiel às próprias observações estéticas. “Em meus filmes, eu procuro
ser sempre direto, criar uma narrativa mais cara a cara para poder revelar as
necessidades do povo brasileiro, que está cada vez mais complicada. Por isso,
prefiro ficar com meus amigos do Cinema Novo e com o que absorvi deles”,
salienta.
Seguindo esse perfil de reflexão dentro da sétima arte, algo
que o acompanha desde seus primeiros filmes, para Sérgio, a postura do cinema e
do audiovisual como um todo, deve fugir de uma presença meramente lenitiva.
“Precisamos usar a arte como uma linguagem de transformação. O negócio é atuar,
é fazer a arte atuar. A função da arte é transformadora. Não é uma coisa de
vitrine de gracinhas. Não é só gracinha, não. É uma arma, também, entendeu? De
combate ao que está existindo aí. Ou você usa essa arma ou então desiste de
fazer arte. Arte é coragem. Se você não tem coragem de encarar sua realidade,
sai fora, velho. Vai fazer outra coisa”, pontua com firmeza. Se muitos da
geração atual ouvissem as palavras dos mestres...
Matéria publicada originalmente em A Tarde, dia 28/01/2018
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