segunda-feira, 26 de março de 2018

Mostra Tiradentes 2018 - Bandeira de Retalhos, de Sérgio Ricardo


Após quarenta anos, o veterano Sérgio Ricardo
reassume a direção de cinema




Artista multifacetado que se envereda com o mesmo esmero pela pintura, composição musical, literatura e, agora, após um hiato de quase quarenta e cinco anos, de volta ao cinema, o octogenário Sérgio Ricardo apresentou na edição 2018 da Mostra de Cinema de Tiradentes seu mais recente filme, Bandeira de Retalhos. Baseado na história real de resistência dos moradores do Vidigal, o longa aborda a saga das pessoas que, no final dos anos 1970, se rebelaram contra as ordens do governo do Rio de Janeiro que visavam a derrubada dos seus barracos. A justificativa era por conta de uma suposta localização em zona de risco de desabamento. Porém, logo descobriu-se se tratar de um golpe da especulação imobiliária.
O longa é definido pelo próprio Sérgio como “cinema de mutirão”. “Esse é um projeto que eu possuía desde a década de 1970. Nunca tive recursos para filmá-lo. Na verdade, no começo do anos 1990, cheguei a ter a possibilidade de realizá-lo, mas o infeliz do presidente da República na época acabou com a Embrafilme”, relembra Sérgio. Foram precisos mais 27 anos para que o trabalho saísse do papel. Mais do que isso, foi necessária a força de um mutirão de pessoas, como bem classifica o diretor, para que isso acontecesse. A produção foi orçada em três milhões de reais. No entanto, a equipe conseguiu a façanha de realizá-lo com apenas 100 mil reais, o que, para muitos projetos, não custeia nem a alimentação durante períodos de filmagem.

A produção foi realizada a partir da integração da ONG e grupo de teatro Nós do Morro, oriundo do próprio Vidigal (a história chegou a ser representada nos palcos, inclusive). Todos os atores, além de participar de entrarem no filme como elenco, participaram do processo de construção dos cenários, composto por casas de madeira a representar a favela de quarenta anos atrás, sendo que muito dos itens utilizados na construção das paredes eram alugados. “Nós tínhamos que ter o maior cuidado com as madeiras, pois além de precisar montar e remontar as casas, já que os materiais eram os mesmos, ainda tínhamos que devolver após o uso”, relembra o cineasta entre sorrisos. Principal apoiador do projeto, o Canal Brasil foi quem entrou na empreitada com o suporte dos cem mil reais. Quantias menores forma levantadas através de financiamento coletivo, que contou com o apoio de nomes como Chico Buarque e do cineasta Beto Brant, entre outros.

O cineasta durante debate na Mostra Tiradentes 2018

“UM SR. TALENTO”

Sérgio Ricardo, para a geração mais nova, pode soar como um nome não muito conhecido. Seu último longa de ficção como diretor foi A Noite do Espantalho, de 1974. No entanto, esse senhor de 85 anos teve sua trajetória de vida mesclada com a da cultura de resistência do Brasil. Iniciou sua carreira como músico em São Paulo, mas foi na noite carioca que se firmou como pianista e compositor, tocando com diversos nomes da Bossa Nova. Durante os anos 1960, filmou seu primeiro curta-metragem, O Menino da Calça Branca. Em 1964, seu longa de estreia, Esse Mundo é Meu, foi lançado durante os conflitos de rua decorrentes do golpe militar. No mesmo ano, assinou a emblemática trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol, iniciando uma parceria com Glauber Rocha e que continuaria com o marco de 1967, Terra em Transe. Além de participar das trilhas de marcos do cinema, Sérgio marcou presença nos populares festivais de música, dentre eles o da Record, onde, diante das vaias que o impediram de cantar, destruiu o violão no chão do palco, atirando-o contra a plateia, momento dos mais simbólicos da música nacional e registrado no documentário Uma Noite em 67.

CINEMA NOVO

Parceiro de Glauber nos filmes citados, Sérgio mantém uma proximidade com os representantes do Cinema Novo. Dentre eles, o baiano Antonio Pitanga, cuja atuação dirigiu em Esse Mundo é Meu (1964) e Juliana do Amor Perdido (1968). A parceria voltou a acontecer agora em 2017. “O Pitanga é, antes de tudo, um grande amigo. Além de um talento assombroso. Sempre penso nele em qualquer projeto que me envolvo. E sei que se Glauber estivesse vivo, faria o mesmo”, afirma.  Sobre o movimento cinematográfico, Sérgio explica ser fiel às próprias observações estéticas. “Em meus filmes, eu procuro ser sempre direto, criar uma narrativa mais cara a cara para poder revelar as necessidades do povo brasileiro, que está cada vez mais complicada. Por isso, prefiro ficar com meus amigos do Cinema Novo e com o que absorvi deles”, salienta.
Seguindo esse perfil de reflexão dentro da sétima arte, algo que o acompanha desde seus primeiros filmes, para Sérgio, a postura do cinema e do audiovisual como um todo, deve fugir de uma presença meramente lenitiva. “Precisamos usar a arte como uma linguagem de transformação. O negócio é atuar, é fazer a arte atuar. A função da arte é transformadora. Não é uma coisa de vitrine de gracinhas. Não é só gracinha, não. É uma arma, também, entendeu? De combate ao que está existindo aí. Ou você usa essa arma ou então desiste de fazer arte. Arte é coragem. Se você não tem coragem de encarar sua realidade, sai fora, velho. Vai fazer outra coisa”, pontua com firmeza. Se muitos da geração atual ouvissem as palavras dos mestres...

Matéria publicada originalmente em A Tarde, dia 28/01/2018





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