Por João Paulo Barreto
Em seu segundo filme sob a
direção de Breno Silveira (o primeiro foi Era
uma Vez...,de 2008), Cyria Coentro teve a responsabilidade de viver a mãe
de Luiz Gonzaga, uma personagem que oscila entre a doçura da maternidade e a postura
firme de uma matriarca familiar no sertão nordestino. Santana, mulher do
lendário sanfoneiro Januário, criou Luiz Gonzaga até os 17 anos, quando ele
precisou fugir da fúria de um coronel de Exu, no interior de Pernambuco. Ela
carregou durante muitos anos a dor por achar que a sua surra foi a responsável
pela partida do filho. “Aquela foi uma surra dada para salvar a vida do próprio
filho. O fato dela chorar no momento em que dá a surra demonstra isso”, explica
Cyria. Santana foi um papel que exigiu um apuro na atuação da atriz baiana, uma
vez que não havia muitas cenas na qual ela pudesse desenvolver essa relação
entre mãe e filho. Com experiência na televisão e no teatro, Cyria está em
cartaz com a peça Los Catedrásticos e
fala nessa entrevista sobre como é transitar tão bem entre a comédia e o drama;
(falta de) opções para o mercado cultural em Salvador e, claro, sobre Santana e
seu filho, Luiz Gonzaga.
Confira o papo!
Olá Cyria. Antes de a gente começar a entrevista, primeiramente eu
queria agradecê-la pelas gargalhadas proporcionadas em Los Catedrásticos.
Ah, sim. (risos) Você viu quando?
Há dois meses, no teatro do ISBA.
Recente, então. Bom, fico feliz por você ter gostado.
Bom, aproveitando esse contexto, eu queria te perguntar sobre essa
transição da comédia para o drama e vice versa. Em Gonzaga, você interpreta uma mãe do sertão, personagem que sofre
pela saudade do filho e tem uma das cenas mais dramáticas do longa. É difícil
conciliar o drama com a comédias?
Olha, eu sou uma atriz
essencialmente dramática e uma comediante circunstancial. Eu não me considero
uma comediante. Por exemplo, Maria Menezes, que é uma grande amiga e minha
colega de atuação em Los Catedrásticos. Ela
tem perfil de uma comediante. Eu não tenho, Mas eu transito bem na comédia
quando eu tenho um respaldo. Mas o meu gênero natural é o drama. Eu tenho mais
facilidade com ele.
Alguns críticos de cinema costumam afirmar que os melhores atores são
oriundos da comédia. Você concorda com isso?
Eu acho que um ator que faz bem o
drama, ele tem grandes chances de fazer bem a comédia. O drama e a comédia são
gêneros opostos e muito difíceis. Cada um com a sua dificuldade específica. Mas
o drama requer um aprofundamento no sentimento. Pois o ator precisa dessa
capacidade de transformar aquele sentimento, vamos dizer, mentiroso, em uma
coisa crível, afinal, ele pode não estar sentindo aquilo de verdade. Isso é
necessário para que o público não fique apenas assistindo-o fazer o drama, para
que o público se emocione junto com ele. Isso para mim é mais delicado do que
você descobrir o timing da comédia. Para mim, o segredo do drama é esse: é você
transformar esse sentimento em algo crível e, de fato, emocionar o público. O
segredo da comédia é você descobrir o timing da piada. São os cliques com os
quais você se liga e leva o público junto com você. Claro que o timing da
comédia não é algo que seja simples, porque uma pessoa que não tem nenhum
traquejo com esse gênero não vai conseguir chegar a esse timing e não vai
contar a piada. Mas é uma coisa menos profunda, algo que requer menos
sensibilidade, digamos assim (pensativa). Não, não é sensibilidade a palavra.
Requer menos aprofundamento, eu vou colocar essa palavra. Por que o sentimento
tem que ter um aprofundamento, e a comédia pode estar em um plano mais
superficial no qual você pode atingir a plateia. Mas o sentimento se você não
aprofunda...
É como se o alcance do timing da comédia fosse mais rápido que o do drama?
(pausa) É, na comédia, se você
está no timing certo, o alcance é mais rápido. Se você está com o timing certo,
toda a plateia vai te acompanhar e rir. Tem que ser alguém muito mal humorado
para não achar aquilo engraçado. E o drama, você transformar aquele sentimento
em algo capaz de captar todo mundo, é mais difícil. O alcance do drama pode não
chegar a todos da plateia, afinal lá pode ter pessoas que são mais difíceis de
se emocionar. Na comédia, se você está no tempo certo, a plateia inteira vai
rir. Para fazer a plateia inteira chorar é mais complicado (risos).
As histórias que Luiz Gonzaga contava em relação aos pais são muito
tocantes e sensíveis, algo que denota uma relação muito intima que ele tinha
com Januário e Santana. Há aquela história da surra que ele levou da mãe quando
resolveu desafiar o coronel, pai de sua amada. Nessa, ele fala que apanhou até
o cabo da faca se desmanchar. Sua personagem, Santana, é uma mãe do sertão. Uma
pessoa que consegue equilibrar bem a doçura da maternidade e o amor pelos
filhos com a aspereza e dureza daquele ambiente do sertão. Como foi trazer esse
equilíbrio para sua atuação? Afinal, você também é mãe e conhece esse sentimento.
Para mim, essa foi a grande chave
e o ponto mais delicado da construção dessa personagem. Ela é, de fato, uma
mulher do sertão. As pessoas do sertão são mais secas, ásperas, pela própria
condição geográfica. É muito sol na cabeça, é muito calor, as pessoas se pegam
menos. Além disso, a rotina de trabalho é muito pesada. A vida é muito dura.
Essas condições acabam por tornar o afeto muito singular e diferente do meu,
por exemplo. Eu sou uma mãe muito rigorosa. Para tudo tem horário, mas, ao mesmo
tempo, eu sou muito amorosa, derretida. Coisa que a Santana não é. E, ao mesmo
tempo, eu não via a Santana como uma mãe dura e rígida apenas. Ela tinha uma
doçura que eu não sabia exatamente onde colocar. Acabou que eu tentei colocar
no olhar. Afinal, ela não tem muita atitude amorosa. E também não demonstra
muito calor amoroso em suas falas. Ela é muito seca no texto. E como em todas as
histórias, são momentos estanques que são retratados. O filme não conta uma
vida, conta momentos. Então, eu não tinha muitas oportunidades dentro do
roteiro para construir essa mãe no decorrer do tempo. Eu não tinha tantas cenas
para mostrar esses lados dela. Onde ela é amorosa, onde está o carinho, onde
esta a dedicação de mãe ou, no outro extremo, onde está a rispidez, a dureza.
Então, eu tentei mostrar essa doçura no olhar. A maneira como ela olha para o
filho, a maneira como ela o repreende foi como eu resolvi usar isso.
Durante a surra, percebemos que ela está chorando, inclusive.
Sim. E o fato dela chorar nesse momento
demonstra que aquela é uma atitude que ela se viu obrigada a ter por ter visto
a iminência do seu filho morrer. Aquela é uma surra que ela dá para salvar a
vida do filho. Ela está se matando para salvá-lo. Após aquilo, ela não se
recuperou. Passou meses sem comer ou dormir direito. Depois que ele foi embora,
ela se culpou e sofreu muito com aquela atitude que cometeu. Afinal, ele passou
16 anos fora. O mais curioso é que nada naquela cena estava previsto. Ela não
foi ensaiada, não tinha texto no roteiro. E foi uma cena que me pegou de
surpresa, pois ela estava escalada para o terceiro dia de filmagem e acabou
sendo a primeira que nós rodamos do filme com a minha personagem. Eu cheguei no
set e o plano de filmagem era com outras cenas externas, mas por conta do tempo
que ficou nublado, acabaram sendo adiadas. Aí nós entramos e fizemos as
internas, sendo a primeira justamente essa da surra. Eu me lembro de ter
entrado em um rápido desespero, chamei Breno (Silveira, diretor do longa), “Breno, como assim? Eu não estou
preparada para filmar essa cena agora. A primeira?” (risos) O texto saiu na
hora de fazer a cena. Tudo que eu falo eu não pensei muito antes. Foi algo um
pouco no susto e acabou saindo.
Seu segundo trabalho com o Breno Silveira. Começou com o Era uma vez... (2008) e agora se
complementa com Gonzaga. Está virando
uma parceria?
Ô, parceria abençoadissima, (risos).
A gente se conheceu durante os testes que fiz para o Era uma vez... Tive sorte de ser selecionada entre tantas outras
atrizes e acabou sendo um encontro muito feliz porque eu sou uma atriz que ama
ser dirigida. Eu não sou uma atriz autossuficiente. Eu chego no set com uma proposta,
com o texto estudado, mas eu sou como um papel em branco. Venho com o texto
estudado e minha compreensão da personagem, mas, ao mesmo tempo, eu venho muito
disponível para o diretor. Amo colocar na minha interpretação pedidos do
diretor. E o Breno tem uma direção muito carinhosa, muito subliminar. Ele não
te fala o que é que ele quer que você faça. É meio como o Zé Celso (Martinez Corrêa, um dos principais nomes da
direção teatral brasileira). Eu trabalhei com o Zé no teatro e, claro, são
coisas totalmente diferentes, eu não estou comparando os dois, mas eu me senti
da mesma forma sendo dirigida no teatro pelo Zé Celso e no cinema pelo Breno.
Eles não falam o que eles querem, de que forma eles querem que você fale, qual
é o gesto, qual a marcação da cena. É uma direção de imagens, repleta de
subtextos e que preenche o ator. Foi uma parceria muito feliz a minha e a do
Breno. Eu gostei da maneira como fui dirigida e ele se sentiu confortável ao
perceber em mim uma atriz que responde ao estímulo do diretor.
Breno é conhecido por ter em seus trabalhos uma carga bastante
emocional. Você acha que isso é um reflexo dessa direção mais calma?
É um reflexo dos tipos de direção
dele e dos temas que ele aborda. O tema que permeia todos os filmes do Breno é
justamente o poder do amor. Ele fala do amor que nasce nas relações e no poder
de transformação desse sentimento. São vários tipos de amor. É o amor de 2 Filhos de Francisco, de um pai pelos
filhos. Esse sentimento não é só o bonzinho ou o cor de rosa. Ele também tem
seu lado cruel, como a surra da Santana; a infância sofrida dos dois meninos
junto ao pai, Francisco; o amor sofrido que nasceu entre o caminhoneiro João e
o garoto que pede carona em À Beira do
Caminho. Em Gonzaga são vários
esses amores. É o amor entre ele e sua paixão de adolescente, entre ele e a
Odaléia e, por fim, o amor que é resgatado entre o pai e o filho no final da
vida. Enfim, para mim, esse resultado dos filmes do Breno, algo que faz com que
eu me debulhe em lágrimas, não que eu seja uma pessoa muito difícil de chorar,
mas, pelo amor de Deus (risos), nos filmes do Breno a gente morre, praticamente,
de chorar. Essa comoção que os filmes dele causam se deve tanto aos temas
quanto a essa forma dele de dirigir, que é muito emotiva. Ele é um diretor que
abraça o ator, sabe? As cenas dramáticas que eu fiz em Gonzaga fazem com que ator entre naquele estado. Claro, muitos
profissionais podem dizer “ah, eu sou um ator, não senti nada”, mas para você
fazer uma cena como a da surra que Santana dá em Luiz, ou a última cena de Era uma vez...,, por exemplo, o ator tem
uma entrega naquela emoção que quando o diretor diz “corta!”, aquilo não acabou
ainda. O Breno acolhe esse ator até você conseguir se livrar daquela emoção. É
o conforto de uma parceria. Eu estou fazendo o filme para ele, então é como se
o Breno estivesse agradecendo. Há uma maneira dele se relacionar com os atores
que é muito afetiva. E isso se reflete nas atuações e no resultado final do
filme.
Você fez parte do elenco de 3
Histórias da Bahia, o filme que reinaugurou a produção do cinema baiano. Hoje,
apesar de ainda não ser o ideal, já há uma diferença perceptível na cena
cinematográfica daqui. Diretores como Sérgio Machado, Cláudio Marques, Marília
Hughes, Pola Ribeiro, Edgar Navarro, Henrique Dantas, João Rodrigo Matos, são
nomes que levam para frente a sétima arte aqui em Salvador. Qual a sua opinião
em relação ao cinema feito na Bahia atualmente?
Eu ainda acho
muito tímido o mercado cinematográfico baiano. Se a gente pensar em Recife, por
exemplo, chega a ser um disparate comparar com a produção de lá. A quantidade
de investimentos em Pernambuco é muito maior. E é lamentável essa falta de
investimento aqui na Bahia. Eu morei no Rio durante onze anos, voltei ano
passado para cá e estou muito triste com o Estado da Bahia como um todo. Salvador
toda esburacada, tudo abandonado, os teatros não tem subsídios. Eu fiquei em
cartaz agora um ano inteiro com um espetáculo de sucesso (Los Catedrásticos) e os jornais, quando vão divulgar a peça, pedem
por fatos novos. Meu Deus, o fato novo é justamente esse! Um ano de sucesso com
a peça, um grupo que tem 23 anos de estrada. Aqui há uma mentalidade ainda
muito do contra. Eu não entendo isso. É como se nem a mídia, nem os governantes,
nem a secretaria de cultura estivesse lutando a favor. Cadê esse prefeito? Cadê
esse governador? Aonde estão essas pessoas? Fizeram o que pela Bahia? Há um
sintoma em Salvador, sabe? Eu não entendo por que a orla daqui nunca teve uma
reforma. Não entendo por que não há hotéis, bares, restaurantes por lá. A Barra
ser daquele jeito há décadas, aquele Porto da Barra sujo daquele jeito. É uma
cidade que é linda, que eu amo, que se eu pudesse escolher, eu moraria aqui,
afinal é o lugar eu nasci, onde minha família e grandes amigos vivem. Foi onde
eu estudei e criei meus vínculos, mas eu sofro morando aqui, sofro por ser um
lugar que não te oferece opções de lazer, que não tem investimentos na área de
cultura. O polo de cinema tá dando sinais de vida, mas ainda não tem a força
que eu acho que poderia ter. O que não falta aqui é artista talentoso e não é à
toa que praticamente todos estão fora. Poucos estão aqui. Afinal, o ator aqui
fica sem opção. Então, você tem que sair, tem que ir atrás. Salvador merece um
investimento maior.
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