Diretor cujas obras tendem a um teor emocional, Breno Silveira disse
ter se assustado quando percebeu que teria que registrar em filme a vida de um
mito como Luiz Gonzaga. “A importância dele hoje é até difícil de mensurar”, explica o cineasta. O acesso às fitas de
entrevistas gravadas por Gonzaguinha nos papos que este levou com o pai nos últimos
anos de sua vida serviu como ponto de partida. A ideia era traçar um roteiro
que focasse na relação conturbada entre esses dois ícones da música brasileira
sem deixar de lada a trajetória do velho Lua. Com três atores vivendo as
diferentes fases da vida de Gonzagão e uma reencarnação vivendo Gonzaguinha
(Julio Andrade, ator que espanta pela semelhança com o filho do Rei do Baião),
Breno diz que ficou muito feliz pela percepção do público nesse êxito da
escolha do elenco. Após o sucesso da cinebiografia da dupla sertaneja Zezé di
Camargo e Luciano em 2 Filhos de Francisco e do emocionante À Beira do Caminho, filme com João Miguel lançado em 2012, Breno Silveira deixa mais uma
vez a marca de seu cinema emocional na história de outro ídolo da música e
ajuda a tornar Luiz Gonzaga ainda mais eterno. É como diz a letra da canção-tema
Mundo do Lua, interpretada por
Gilberto Gil “Que vocês ainda possam me escutar/ Através de minhas velhas
gravações/ É sinal que o mundo vai continuar / A Viver de mitos, sonhos e
paixões”. Com obras como Gonzaga – De
Pai pra Filho, esse sinal cantado por Gil
se torna ainda mais perceptível.
Confira o papo!
Adentrar no universo mítico de um monumento como Gonzagão. Você tinha
ideia do desafio que seria transformar a vida desse cara em filme?
Para mim, é um desafio muito duro
falar de um cara que mitifica ainda mais com o passar do tempo. Isso é muito
bonito. Se você vai a vários lugares do nordeste, Gonzaga ainda é a mola de
tudo. Não tem São João sem que ele não seja o cara mais tocado. Todo ano ainda
é assim. Ele cresceu com o tempo. A importância dele hoje em dia é difícil de
medir. É um ícone nordestino de uma importância absurda e é de uma
responsabilidade tremenda ter que retratar um cara que é um mito. Eu juro que
cada vez que eu pisei em Pernambuco, que é a terra de meus avós, eu pensava:
“cara, eu to fazendo a historia desse cara? Tô maluco!” (risos) Mas eu acho que
no filme eu consegui ter a sorte de encontrar um eixo que foram essas fitas. E
através dessa relação, eu consigo mostrar uma parte de Gonzagão. Não um todo,
porque eu acho que ia precisar de uns dez filmes pra contar toda a vida dele.
No mínimo. Nem em uma minissérie eu acho que conseguiria. Até mesmo porque esse
filme vai se transformar em uma minissérie da Globo onde eu poderei colocar
outras coisas. Mas é porque Gonzagão é muito grande. A gente não tem ideia do
tamanho desse mito. Acho que a maior dificuldade nessa produção, nesses sete
anos em que a história está comigo, foi chegar em um roteiro que tivesse
começo, meio e fim e contasse as histórias que eu achasse importantes para que
o público entendesse um pouco de Gonzagão. Mas que eu tinha certeza que não ia
contar tudo, afinal, ele é muito grande.
No filme, assim como em 2 Filhos
de Francisco, você opta por inserir o próprio personagem real na trama. No
caso de Gonzagão, imagens e áudios de arquivo permeiam a projeção. Você
acredita que essa mistura de documentário com ficção ajuda na construção da
narrativa?
Essa dúvida me surgiu durante a
montagem. Quando eu escrevi o roteiro, eu nunca pensei em fazer isso. Mas, de
alguma forma, eu comecei a sentir falta da figura do Gonzagão no filme. Esse
cara era mais emblemático, eu acho, do que o que eu tinha conseguido filmar.
Isso acrescenta de alguma forma para o público que não conhece a figura de Luiz
Gonzaga. Porque quem sabe da importância dele, de alguma forma, no filme, vai
entender sem precisar da interferência da imagem de arquivo. Mas quando eu
mostrava para um público mais jovem, algumas dessas pessoas não tinham ideia da
imagem dele. E aquilo causava uma potência, sabe? Porque o cara se assustava!
“Pô, mas esse era o cabra?” Isso acontecia quando eu mostrava para aquele público
mais novo, ou figuras lá do Rio de Janeiro que não o conheciam direito. Porque
Gonzagão é aquele cara muito forte no nordeste, mas de alguma forma, no sul,
ele é menos lembrado. Então, para esse público, a diferença era de ter uma
imagem de arquivo ou não era tão grande que eu cheguei à conclusão que tinha
que inserir.
Você acha que isso pode facilitar, também, em uma possível carreira do
longa no exterior?
Quando eu penso no filme, eu
concluo que ele tem de ser bom, também, para o estrangeiro. Não porque eu penso
que ele obrigatoriamente tenha que fazer carreira internacional, mas, sim,
porque a gente não tem que pressupor que as pessoas conheçam Luiz Gonzaga. Eu
sempre penso nisso. 2 Filhos de Francisco
foi bem pra caramba lá fora. Vendeu pra Ásia inteira. Eu abri sete salas em
Tóquio. E é uma história muito brasileira, mas de alguma forma, ela está
contada de um jeito que você não pressupõe que sejam dois caras famosos. Então,
essa opção de inserir a imagem real consegue emoldurar para um pessoa que não
conhece o Luiz Gonzaga. E essa inserção do material de arquivo causa um furor,
sabe? É muito louco.
Sem contar que as versões originais das canções de Gonzagão são
difíceis de serem recriadas por causa da técnica única que o velho Lua possuia.
Pois é. Por exemplo, ninguém
tocava o “Vira e Mexe” do jeito que eu queria. Nenhum sanfoneiro. Nenhum!
Quando eu via as imagens, eu dizia: ”Mas olha o safado como toca!”. Aí alguém
sempre me dizia que aquele era um swingue que só um sanfoneiro como Gonzagão
tinha. Era uma particularidade dele. Então, eu pensei, “vou ter que ter ele
mesmo tocando essa música porque eu não estou aguentando esse ‘Vira e Mexe’ de
estúdio que vocês fizeram” (risos). Essa acabou sendo a primeira imagem de
arquivo que eu inseri. Eu lembro de ter falado: “Vocês estão com um estúdio
moderno, com três ou quatro sanfoneiros! Esse cara esta somente com uma zabumba e um triangulo e o som que
está vindo da imagem real é dez vezes mais bonito do que o que vocês gravaram
para acompanhar o Chambinho (do Acordeon,
ator que vive Gonzaga na fase adulta)”. Essa foi a primeira vez que eu
senti falta do original. Então eu pus e ficou só aquele. Aí quando veio “Asa Branca”, eu falei: “Ah, rapaz, Asa Branca é maior do que isso!”. Só o
real iria dar a imagem de quem foi esse cara. Não adiantava ser uma
superprodução, pois só o real iria conseguir transmitir a dimensão dele.
E aqueles vídeos famosos dele, como a história de seu retorno a Exu e o
reencontro com Januário? No filme, eu percebi que a história não estava na
integra. Foi doloroso ter que cortar alguns trechos?
O áudio original me dava vontade
de colocar a cena na integra. A fala do “cheiro do velho, do cheiro da família”
ou o barulho do “timbungado” do caneco, eu tinha vontade de colocar aquilo
tudo. E ficava desesperado na montagem quando percebia que tinha que cortar
(risos). Eu escutava o pessoal na sala de montagem me dizendo que esse filme
completo que eu queria fazer não seria possível. Então, o jeito era cortar. O
problema era que quando cortava na voz de Gonzaga, cortava também na imagem,
sendo que a cena original que eu gravei tinha toda a reconstrução daquele
momento. Pra você ter uma ideia, toda a cena até o momento chave, que era o
abraço dele no pai, tinha quase dez minutos. Então, a ideia era cortar todos
aqueles minutos para sermos objetivos, uma vez que a cena teria seu auge no
abraço e na festa pelo retorno do Luiz.
A escolha dos atores que viveram o Gonzagão foi algo bem eficiente, uma
vez que são três gerações e a transição de um para o outro ocorre de modo bem
natural. Quando vemos o adolescente Lula na interpretação de Land Vieira passar
para o Chambinho do Acordeon e, em seguida, para o Adélio Lima, sentimos uma
naturalidade na transição. Como foi a seleção desse elenco?
Uma das coisas que mais me deixa
feliz é esse tipo de comentário. O Merten (Luiz
Carlos Merten, crítico de cinema do jornal Estadão), escreveu exatamente
isso. Ele falou que são três figuras que você não percebe a diferença entre
elas. E são três atores totalmente diferentes!
Eu pensei que o Adélio Lima e o Chambinho eram a mesma pessoa!
(risos) Olha que lindo isso!
Realmente, fico feliz. É aquela forma de atuar que a gente trabalha no set. Os
trejeitos dos atores, as passagens. Eu tenho um cuidado muito grande com isso
porque meu sonho era fazer com o mesmo ator. Mas eu já me deparei logo no
começo com esse problema de selecionar o protagonista. Eu fiz uma porrada de
testes de elenco com vários atores famosos, alguns globais até, e nenhum deles
se parecia com o Gonzaga. Depois eu comecei a fazer testes para saber se algum
deles tocava um instrumento. Um ou outro até tocava, mas sanfona era algo
complexo. Depois eu quis que eles cantassem, e nenhum deles tinha aquele
vozeirão do Gonzaga. Bom, aí nesse ponto eu já estava achando que havia entrado
em um beco sem saída. E isso já com a
data pra começar a filmar marcada e eu ainda não tinha meu protagonista. Mas
não podia ser. Em algum canto desse país deve ter um Gonzaga, eu pensava. Aí
começamos a anunciar nas rádios. Em Caruaru, nas rádios do nordeste. A partir
desse ponto, apareceram cinco mil inscritos. Com essa quantidade de inscritos,
eu comecei a perceber que com Luiz Gonzaga, nada era pequeno. Não tinha
brincadeira pequena com ele. Aí tivemos que criar uma forma de triagem e separamos
por foto todos aqueles que eram parecidos com ele. Aí a lista caiu para 100
pessoas mais ou menos parecidas. Depois separamos todos aqueles que eram
músicos daqueles que tinham atuação. O número já caiu para quarenta. A partir
daí seguimos para as entrevistas individuais. Dez foram escolhidos e trazidos
para o Rio de Janeiro onde cinco deles foram selecionados para ficar em
laboratório de atuação em uma casa de Copacabana junto comigo e com o
preparador de elenco. Com esses cinco, eu comecei a perceber que não tinha
todas as idades e só o Chambinho que tinha aquele sorriso largo que esbanjava a
simpatia do Gonzaga. Nesse momento, eu o escolhi e mandei o Adélio embora.
Expliquei a ele que não dava porque ele não tinha aquele sorriso largo do
Chambinho, que era como do do Gonzagão. Foi quando ele me perguntou sobre a
versão mais velha do Luiz e eu disse que preferia trabalhar com maquiagem. Mas
o Chambinho não tinha a estrutura física da versão idosa do Luiz. Aí a condição
que eu coloquei pro Adélio ganhar o papel foi ele engordar, no mínimo, dez
quilos. E o cara engordou! Voltou ao Rio de Janeiro dez quilos mais gordo.
Gordo feito um major, como diria o velho Lula.
Exato. Gordo feito um major
(risos). Ele falava assim. Esse texto, inclusive, está no filme. Mas não entrou
para esse corte. É quando ele entrega a sanfona para penhorar e volta na mesma
birosca anos depois. Nessa volta, ele pergunta ao dono que está ouvindo rádio
se costuma tocar muito Luiz Gonzaga ali.
O cara, sem reconhecer o homem, responde dizendo que toca demais. Luiz
pergunta a ele se é verdade que o cantor é dali daquelas bandas. O dono da
birosca se empolga dizendo que sim, ele é o filho de Januário, mas agora ele
enricou. Tá gordo feito um major (risos).
O roteiro é baseado no livro da Regina Echeverria e nas fitas que
Gonzaguinha gravou com entrevistas com pai. Como se deu o processo de filtragem
para chegar ao material final?
Antes dessas fitas que me levaram
a fazer o filme chegarem às minhas mãos, elas passaram pela Regina, que acabou
fazendo uma bela biografia. A partir disso, a gente comprou os direitos do
livro para fazer o longa. Com o tempo, eu acabei percebendo que as gravações me
comoviam mais do que o próprio livro. Então, eu usei muito a obra, mas nas
fitas tinham informações mais importantes e, fora isso, a quantidade de
histórias que iam chegando das pessoas que viveram com ele era tão absurda que
somente a biografia não deu conta. Então, o filme acabou tendo uma parte
inspirada nela, mas o resultado final foi além. Afinal de contas, Luiz Gonzaga
possui muito mais histórias do que um livro.
A música do Gilberto Gil (Mundo
do Lua) entrou no projeto de que forma?
Eu procurei o Gil porque uma
parte das músicas do Luiz Gonzaga foram regravadas por ele na ocasião de Eu Tu Eles, filme do Andrucha Waddington
que eu fotografei. No disco do filme, ele regravou mais de dez músicas do Luiz.
E aquela coisa me impressionou muito porque o Gil falava demais no Luiz
Gonzaga. Quando esse projeto começou, uma das primeiras pessoas que eu fui
entrevista foi o ele. Na ocasião, Gil demonstrou interesse em me ajudar e criar
uma parceria no projeto. Foi quando eu pedi a ele uma canção e que me ajudasse
na seleção das músicas. Ele respondeu que “pra Gonzagão, qualquer coisa na
terra”. Pouco antes de eu terminar o
corte do filme, eu mandei para ele algumas imagens. Acabou que ele me procurou
depois dizendo que tinha se emocionado e que havia composto uma canção sobre o
Luiz Gonzaga, Mundo do Lua, cuja
letra abre o filme. Uma canção linda demais.
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