O diretor Jonas Carpignano no set de Ciganos de Ciambra |
Em Ciganos de
Ciambra, o diretor ítalo-americano Jonas Carpignano nos apresenta à família
Amato, um grupo de ciganos cujo principal objetivo é sobreviver a mais um dia.
Dentre eles, está Pio, pré-adolescente a descobrir que sua realidade não é
atrativa e seu futuro não será muito promissor. Pio não possui exemplos
louváveis. Seu irmão mais velho, basicamente um ídolo a quem ele segue de forma
cega, acaba de ser preso. Fica sob a batuta da criança ajudar no sustento da
família repleta de irmãos e sobrinhos mais jovens. Quase como um Pixote, Pio
não tem opções a não ser o delito. Rouba carros e fios de cobre para levantar
qualquer dinheiro. Na figura paterna do amigo Ayiva (vivido por Koudous Seihon,
parceiro habitual do diretor em vários filmes), um imigrante africano na
Itália, o garoto encontra um norte. Mas nem mesmo aquela amizade o ajudará a
escapar de seu destino que flerta com o trágico. Produzido por Martin Scorsese,
Ciganos de Ciambra é um filme
pungente e desanimador. Justamente por isso, tão fascinante. Candidato da
Itália a uma vaga no Oscar desse ano, a obra traz ecos da filmografia do lendário
cineasta. “Para mim, Caminhos Perigosos possui
uma rima com Ciambra. As pessoas como
produtos do seu ambiente em um aspecto trazido por Scorsese é o que me chama
atenção. E foi muito bom ouvir isso dele mesmo”, afirma Jonas Carpignano em
entrevista ao A Tarde. O filme está em cartaz no Circuito Sala de Arte. Confira
o papo completo!
Por João Paulo Barreto
Seu
filme traz uma atmosfera realista que encontra ecos justamente em um cinema
clássico italiano. Em um perfil quase documental, você optou por trabalhar com
não atores, pessoas que estão representando a si mesmas. Como se deu essa
construção?
Sim, é como você disse. Isso vem de uma tradição do Realismo onde eu tentei criar uma verossimilhança. Tentei encontrar em cada pessoa a melhor representação deles como atores. A proposta era criar de forma acurada uma reimaginação daquele lugar no mais próximo possível da realidade daqueles indivíduos. A ideia era sempre usar o máximo de elementos possível do próprio universo deles para tentar representá-los no mais próximo de como eles vivenciaram aquelas experiências de vida no passado e que, agora, eu trouxe para o cinema. Mostrar a maneira como eles vivem em Ciambra. Não apenas com os atores representando a si mesmos, mas, também, com outros elementos. Nós os filmamos em sua própria casa, com eles usando as próprias roupas, os próprios veículos. Tudo vem daquele mesmo lugar. Até a música no filme. É a música que você escuta de verdade quando você está em Ciambra. A ideia era criar, era colocar o espectador em um lugar que realmente existe. E nós fizemos isso usando o máximo possível de elementos próprios daquele lugar.
Pio e sua mãe: sobrevivência diária e conflitos |
Nessa
opção de usar uma família real, você adentra na rotina dela, se vê dentro da sala
de sua casa, registrando uma hora em que todos jantam, trazendo à tona brigas
ou momentos de ternura. Foi difícil esse processo?
Para mim, como diretor, eu diria que aquela
era a maneira como eu queria fazer as coisas. Eu não diria que foi fácil, mas
fez com que eu me sentisse mais confortável , porque eu senti que seria mais fácil
captar alguma coisa do modo como realmente aconteceu naquele lugar. Você
exemplificou com uma cena ideal. Quando filmamos a cena do jantar, nós
esperamos até a real hora do jantar e filmamos quando eles estavam comendo de
verdade. Do mesmo modo, quando eles acordavam de manhã. Nós chegávamos lá bem
cedo de manhã, e nos preparávamos para filmar enquanto eles estavam acordando.
Para mim, não era fácil, mas era a maneira que eu queria trabalhar. Mas,
obviamente, o processo não era apenas dirigindo os atores. Eu também dirigia a
equipe técnica do filme. E isso era um desafio a mais. Porque, naquele
ponto, eu precisava fazer a equipe se acostumar com o ideia de que aquele não
era um set comum. Nossa rotina era mostrá-los acordando de manhã, tínhamos um
intervalo depois de seis horas de trabalho, e continuávamos o trabalho por mais
algumas horas. Por isso, a equipe tinha que ser pouco ortodoxa. Nós tínhamos
uma rotina um tanto incomum. E isso dificultou um pouco às vezes porque algumas
pessoas não sabiam necessariamente quando o dia de trabalho começava ou
terminava. Nós tínhamos que convencer o grupo a se adaptar a esse outro ritmo,
que não era a maneira com a qual eles estavam acostumados a trabalhar.
Seu
protagonista, Pio Amato, possui uma química palpável com seu colega de cena,
vivido por Koudous Seihon, que participou de todos os seus filmes. Como vocês
planejaram essa abordagem a Pio, sendo ele uma criança e, também, um ator não
profissional?
Eu e Koudous somos colegas de quarto já há sete
anos. Nós moramos juntos. E Pio se tornou um amigo muito próximo à gente desde
a primeira vez que eu estive na Ciambra. Então, acabou sendo uma evolução muito
orgânica. Nós passamos muito tempo juntos. Nós gostamos de trabalhar juntos. A
ideia de mostrar essa próxima evolução da amizade deles foi uma coisa que levou
à outra. Eu nunca tive que escrever nada pensando nisso, pois foi algo que
aconteceu naturalmente, uma vez que todos nós convivemos juntos. Eu apenas tive
que transcrever o que estava, na realidade, acontecendo em nossas vidas. Acho
que por isso essa naturalidade. Nunca foi algo que a gente realmente discutiu
ou planejou inserir no filme. Mas nossas vidas têm essa proximidade. Logo,
inevitavelmente, o que se vê representado no filme em relação àquela
espontaneidade é o que na verdade acontece em nossas vidas.
Koudous e Pio: química palpável entre atores |
Martin
Scorsese é produtor executivo do seu filme. Como foi a experiência de trabalhar
com ele?
Obviamente (risos), como todo mundo, eu sou um fã
do trabalho dele. O primeiro impacto que tive foi ouvi-lo falar sobre o meu
filme. Ele fez com que eu me sentisse como um estudante aprendendo sobre meu
próprio longa metragem (risos). Ele começou a explicá-lo para mim, como se
estivesse me ensinando o filme. E, obviamente, quando ele fala, você escuta. Scorsese
foi ótimo. Ele estava bastante interessando em falar não somente como um
cineasta, como um editor ou diretor, mas ele queria falar, também, como um
espectador. Ele comentou sobre o impacto emocional que o filme teve nele e que
ele queria nos ajudar, ajudar o filme, levando os pontos emocionais em uma
direção em que eles fossem mais eficientes. Por exemplo, a cena do jantar em
família. Ele disse para mim: "Jonas, essa é a cena em que eu me sinto
vivendo com aquela família. Eu não estou apenas observando-os. Eu estou vivendo
com eles." Então, ele me aconselhou a dar àquele momento todo o espaço que
eu conseguisse dar para que o espectador pudesse esquecer do fato de que eles
estão assistindo a um filme. Esquecer do fato de que há atores na tela. Ele
disse: "Faça-nos viver com eles para que possamos nos sentir lá, com eles,
naquele jantar. E isso fará o final do filme muito mais emocional, muito mais
impactante". Vindo de Scorsese, esse foi o melhor conselho que eu poderia
receber, pois nos ajudou a maximizar a resposta emocional da audiência para com
o filme.
Falando
em Martin Scorsese, é curioso observar alguns ecos de sua filmografia em Ciganos de Ciambra. Creio que o mais
marcante é o de Caminhos Perigosos.
Sim, é verdade. Caminhos
Perigosos possui diversas semelhanças com Ciganos de Ciambra. É um tipo de filme que traz aquele grupo de
pessoas preso ao mundo que os rodeia, à vizinhança onde eles vivem. Todas as
decisões que eles tomam são relacionadas ao meio. Observe Johnny Boy,
personagem de Robert De Niro. Ele é muito mais um produto da Little Italy (bairro popular de imigrantes italianos em
Nova York). E ele não consegue escapar. E se não quer escapar, é porque
aquilo é tudo que ele conhece. E eu acho que aquela é a maior similaridade com
a história de Pio. Mesmo que ele seja bem mais jovem que Johnny Boy, é inegável
que ele é um produto do ambiente onde vive. Quando eu conversei pela primeira
vez com Scorsese sobre Ciganos de Ciambra,
a conversa logo seguiu para algo acerca dessa relação.
É
verdade que sua primeira aproximação com o lugar se deu por conta do seu carro
ter sido roubado e você ter ido até lá para buscá-lo?
(Risos) Sim. Eu não quero comprometê-la com
problemas, mas uma pessoa da família de Pio roubou meu carro. Encontrar um
filme naquela circunstância é a prova de que, se você tem uma mente aberta, não
existe esse negócio de uma experiência ser 100% ruim. Obviamente, foi
estressante ter que fazer aquilo. Mas, por outro lado, uma ótima amizade surgiu
de um dos momentos mais assustadores de minha vida, entende? Então, o que eu posso
dizer é: mantenha seus olhos abertos, veja o que acontece e boas coisas podem
vir.
*Entrevista originalmente publicada no Jornal A Tarde, dia 21/05/2018
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