sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Cachoeira Doc 2016 - Mostra Competitiva VIII


Entretempos (Ceará, 2015, 7min) Direção: Yuri Firmeza e Fred Benevides.

Tema essencialmente presente entre as obras selecionadas para as mostras competitivas do Cachoeria Doc, Entretempos aborda as transformações de cidades não somente pelo seu viés geográfico e urbanista, mas pelo cunho social e, de forma traumática, excludente no quesito étnico.

Através de colagens de imagens que desenham um panorama de construções e demolições em bairros populares do Rio antigo, mais propriamente a região conhecida como Pedra do Sal ou “pequena África”, nos arredores da Praça Mauá, o filme de Yuri Firmeza e Fred Benevides apresenta uma marcante crítica ao modo como a exclusão racial se encontra tão escancarada na pretensa ideia de “modernização” dos locais comuns a todos.

Nas animações publicitárias de empreendimentos imobiliários, juntamente com a inserção das figuras brancas como um modo a demarcação territorial, uma chocante observação do modo selvagem como a gentrificação de áreas completas de uma cidade pode acontecer tão às claras.

Em seu título, Entretempos propõe esse intervalo, algo que, em um mundo ideal, significaria uma evolução. No entanto, a repetição das mesmas práticas do período colonial se observa apenas como uma roupagem disfarçada, mas tão óbvio quanto o que é evidenciado pelas imagens dos documentos comprovadores de negociações por escravos.

Embranquecimento e gentrificação de uma cidade

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SemTítulo #2 – La Mer Larme (São Paulo, 2015, 31min) Direção: Carlos Adriano.

Em Sem Título #1: Dance  of Leitfossil, o cineasta Carlos Adriano apresentou, em pouco mais de cinco minutos, uma belíssima homenagem a Bernardo Vorobow, seu companheiro de longa data, parceiro na direção de diversos trabalhos e experiente programador que esteve, por quase 40 anos (de 1970 até sua morte, em 2009), à frente de diversos centros de programação cinematográfica, como o Museu da Imagem e Som.

Conhecido como o “Sr. Cinemateca do Brasil”, Vorobow tem sua imagem inserida à bela justaposição da dança de Fred Astaire e Ginger Rogers com a música Desfado, interpretada pela cantora portuguesa Ana Moura. Trata-se uma obra cujo ritmo enérgico, somado ao casamento perfeito entre imagem e som, cativa o espectador de forma acachapante, tornando impossível que um sorriso não se faça presente do começo ao fim de sua breve projeção.

A cumplicidade observada em um frame 
Na sua continuação SemTítulo #2 – La Mer Larme, Adriano dá uma vazão ainda maior à homenagem que continua a merecer Vorobow por sua trajetória no cinema nacional. Aqui, a escolha musical fica por conta da canção francesa La Mer, de Charles Trenet, interpretada por ele e por uma grande variedade de artistas. Nas imagens, observamos dois homens a conversar em um convés, no qual violência da maré e dos ventos os leva a compartilhar uma cumplicidade em comum. Cumplicidade essa que faz referências à forma escolhida pelo diretor a homenagear Vorobow, cujas imagens são, assim como em seu antecessor, novamente inseridas juntamente com registros de um cateterismo, em uma clara alusão às complicações cardíacas que o levaram.

Nas imagens, uma estendida justaposição das cenas já citadas e de colagens de obras seminais dos primórdios do cinema. Uma diferente experimentação, com união de imagens e repetição constante de seu tema musical, algo que pode até causar estranhamento no público desavisado por conta de sua duração e experimentalismos, mas que, da mesma forma que em sua primeira parte, leva o espectador a perceber e se comover diante de um teor saudoso e um modo particular e idiossincrático de se observar o luto.

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Filme de Aborto (São Paulo, 2015, 63min) Direção: Lincoln Péricles.

Há em Filme de Aborto, do diretor Lincoln Péricles, uma análise pertinente do modo como subempregos (no caso, telemarketing) são capazes de destruir auto-estimas e causar depressões. Neste aspecto, o filme funciona por tocar em um assunto delicado, algo já notório e que afeta muitas pessoas. Nesta proposta, ao trazer o tema para uma dramatização, o longa acerta por evidenciar algo que merece atenção. Mas, como seu título já diz, outro ponto é verificado.

Trata-se de uma obra inventiva, que aborda a questão do direito feminino ao aborto de maneira a alfinetar uma sociedade paternalista e machista na qual as mulheres não possuem os mesmos direitos e conivências. Somando-se ao drama imposto pela necessidade empregatícia, o filme acaba mirando e desenvolvendo não exclusivamente um único aspecto que aflige seus personagens, o que gera um problema no foco que o trabalho possui. A escolha não chega a prejudicar o resultado, mas o modo como isso é executado, sim. Principalmente quando o filme opta por inserções de imagens (vide a sequência com o vagabundo de Chaplin) que servem apenas para causar uma quebra em sua narrativa, mas que não alcançam qualquer intento.


Desconsiderando isso, é interessante focar nos pontos de acerto de Péricles. O mais óbvio reside na inversão irônica de um casal que deseja ter filhos, mas, no contexto, quem engravida é o homem. O aborto, nesse caso, é legal, uma vez que não é realizado pela mulher. Neste aspecto, o filme traz boas reflexões e causa até bons momentos em sua acidez, como quando vemos dois “grávidos” conversarem enquanto esperam o atendimento na clínica onde será feito o procedimento, algo que remete às esquetes surreais propostas pelo grupo britânico de humor, Monty Python. 

Inversão dos papéis e a reflexão dura através da ironia do humor

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Cachoeira Doc 2016 - Mostra Competitiva VII



Nunca é Noite no Mapa (Pernambuco, 2016, 6min) Direção: Ernesto de Carvalho.

Vencedor do prêmio de Melhor Curta Metragem da edição 2016 do Cachoeira Doc, Nunca é Noite no Mapa apresenta uma ideia simples, mas de uma sagacidade impar. Trata-se do tipo de filme cujo tema central e modo de execução rimam em um pertinente uníssono e cuja denúncia contida em seu conteúdo reverbera de forma ainda mais evidente por conta dessa mesma forma de execução.

A partir de visitas ao google mapas espaçadas por intervalos de tempo, o diretor Ernesto de Carvalho avalia as imposições arbitrárias realizadas em Recife durante o período que antecedeu a Copa do Mundo, registrando as mudanças que ocorreram na região, com a derrubada de casas para a passagem de novas avenidas.

O diretor se insere em seu experimento se tornando objeto de observação
Ao se colocar como elemento dentro do seu filme, o narrador/diretor observa as mudanças ao seu redor como um dos elementos diretamente afetados por aquelas ações agressivas. Não que ele já não cumprisse esse papel, uma vez que vive dentro daquela realidade. Mas, ao se propor analisar os objetos dispostos dentro do mapa do mesmo modo como eles são classificados por aquele olhar digital e desumano, o narrador acaba por trazer uma nova perspectiva, tornando o mapa a sua realidade e mantendo-se ali, inserido até o fim, como sendo apenas isso: um objeto a ser apenas exposto sob a visão de uma máquina.  

Assim, as camadas daquele universo vão sendo sobrepostas uma após a outra, trazendo à tona a forma selvagem com aquelas mudanças são impostas. Em seu título, um congelar do tempo é proposto pelo filme. Nesse ínterim, pessoas são descartadas dentro de um universo virtual.

Algo que reverbera e reflete de modo brutal na realidade que serviu como modelo fotográfico para aquele registro atemporal.

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Fort Acquario (Ceará, 2016, 7min) Direção: Pedro Diógenes.

Das formas mais eficientes de se denunciar o abusivo poder dos mais abastados sobre uma população que os sustenta, a tática de se usar seu próprio discurso contra o opressor é uma das que melhor funciona.

Em Fort Acquario, o diretor Pedro Diógenes consegue essa proeza de modo bastante eficiente. Ao utilizar a oportunista fala de um arquiteto ao expressar-se sobre todos os supostos benefícios que a construção de um aquário de visitação pública trará à praia de Iracema, em Fortaleza, Diógenes contrasta toda a argumentação ensaiada do homem com fotos da utilização da praia de modo democrático e acessível a todos. Da forma como deve ser.

A observação do uso do espaço público como ele deve ser: sem apropriações
Nesse intento, as imagens de pessoas a caminhar pelo calçadão com os tapumes da obra a destoar da paisagem e as palavras do arquiteto a afirmar que aquela será uma revitalização que trará de volta ao lugar as famílias que lá merecem frequentar, servem justamente como um resposta das mais eficientes àquela forma baixa de se vender uma ideia.

Na opressão imposta pela classe dominadora que insiste em se apropriar dos espaços comuns em nome de uma suposta segurança geral, o filme ainda acerta em cheio ao usar a voz daquela que, até então, era um dos símbolos de rede Globo, talvez a maior aliciadora de intelectos e manipuladora de fatos em detrimento de interesses escusos como os que estavam por trás daquela construção em Fortaleza.


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Dia de Pagamento (Pernambuco, 2015, 28min) Direção Fabiana Moraes.

Como um filme de personagens que se encadeiam a partir da narração em off que guia o espectador por duras trajetórias de vida,  Dia de Pagamento funciona através de um registro do modo como um suposto progresso muda a vida de gente simples. Nem sempre para melhor, friso. Na estrutura de seu documentário, a cineasta Fabiana Moraes insere a encenação de situações que ajudam a compor a mise en scène do filme e colaboram com uma quebra do que correria o risco de se tornar uma estrutura documental clichê.

Não é o caso aqui. Nas apresentações de seus personagens, a diretora traz suas histórias e rotinas de modo a familiarizar o espectador com aquela realidade. A de pessoas como a dona de casa e mãe de três filhos, que trabalha por pouco mais de mil reais e têm nessa quantia a perspectiva de um mês inteiro. Que precisa pagar em dez prestações quatro cadeiras plásticas, mas que consegue observar o mundo ao redor de sua casa pequena e perceber que ao menos aquilo lhe pertence. Na pequena habitação adquirida, ela consegue se sentar à porta e observar aquilo como sendo seu.

O registro das mudanças em nome do suposto progresso
A representação do progresso em questão é a transposição do Rio São Francisco, obra que altera rotinas e difere paisagens. Nessa mutação de toda uma região, as mudanças podem ser traumáticas justamente pelo modo temporário e fugaz com que seus benefícios se apresentam. Um exemplo disso está no enquadramento que conta a história do dono do bar que faturava cinco mil reais por mês no auge do movimento de operários, mas que, agora, tem sua renda mensal restrita a quinhentos reais.

É um filme humano em sua essência. Por mais simplória que essa definição possa parecer, ela tem sua eficiência na forma como a diretora Fabiana Moraes consegue captar uma face única de seus entrevistados. Seja no gracioso momento em que ensina uma senhora a linha que ela terá que proferir (sendo necessárias diversas repetições) ou na triste abordagem de outra moradora idosa que conta a experiência de perder seu jumento para uma pedrada oriunda de uma explosão planejada (isso sem contar o fato de que a indenização que lhe ofereceram foi de dez reais). É nestes encontros que a obra se constrói e encontra seus melhores resultados.

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Aracati (Rio de Janeiro e Ceará, 2015, 62min) Direção: Aline Portugal e Julia de Simone.


É curioso o fascínio gerado pelo média metragem Aracati,dirigido pelas professoras de roteiro Aline Portugal e Julia de Simone. Trata-se de um filme extremamente sensorial, um literal estudo do vento que leva o nome título do filme e que tem como sua característica mais marcante o fato de que sopra no mesmo horário diariamente, levando movimento a várias turbinas geradoras de energia eólica no estado do Ceará e a certeza de uma rotina infalível aos moradores da região.

A partir de um inicio que segue uma estrutura formalista, exibindo o local de manufatura dos gigantescos moinhos de vento que adentram o estado, o filme gradativamente caminha para uma abordagem humana, exibindo as transformações dos lugares e o modo como as mesmas afetam os habitantes ao redor. Nisso, alagamentos de cidades para criação de represas apagam não somente as estruturas físicas dos locais, mas, também, o emocional de seus cidadãos.

O progresso e contraste de paisagens
Nessa certeza de mudança constante, as pessoas ao seu redor tendem a se tornar meros observadores de toda aquela mutação. E a partir da presença da câmera da dupla de cineastas, um novo contexto é percebido na vida daqueles cidadãos. Um deles caminha pelo lugar onde antes havia uma cidade, mas que, agora, apenas ruínas de um alagamento permanecem. Em um tom de nostalgia, o vemos comentar que aquela foi a primeira casa da rua. Ele caminha pelos “cômodos”, observa uma mala esquecida na areia que cerca o local. É de sua vida que estamos falando. É da sua estrutura de vida que lhe foi retirada em nome de algo que supostamente se chamaria progresso. O progresso físico das coisas. Aquele que suplanta o emocional e sentimental de outras.

Aracati é um filme que trata desse tom passageiro, dessa mensagem que aborda o transitório. Que usa a metáfora do vento a cruzar a região de modo a salientar justamente essa ideia de mudança que, de forma contraditória, se torna algo indelével, uma vez suas alterações são definitivas.


No som oriundo do soprar constante do Aracati é que está uma das poucas coisas imutáveis na vida dos habitantes daquela região. 

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Bruxa de Blair

(Blair Witch, EUA, 2016) Direção: Adam Wigard. Com James Allen McCune, Callie Hernandez, Corbin Reid, Brandon Scott, Wes Robinson, Valorie Curry.


Por João Paulo Barreto

Creio até que demorou tempo demais para que o fenômeno de 1999, The Blair Witch Project, filme de terror em formato documental dirigido por Daniel Myrick e Eduardo Sanches sob o troco de orçamento que é a bagatela de 60 mil dólares trazer um retorno mundial de quase 250 milhões de dólares.

Sim, foram 17 anos de diferença entre aquele filme e uma continuação realizada nos mesmos moldes (Bruxa de Blair 2 – O Livro das Sombras, lançado em 2000 e sem as características do original não conta). De lá para cá, uma revolução digital aconteceu. O Big Brother se tornou um dos mais populares programas de TV. Realmente, a demora surpreende. Aqui, novas e menores câmeras digitais; equipamentos de captação minúsculos que podem ser usados como bluetooths no ouvido; drones; GPS; google maps; internet 3G, enfim, tudo o que poderia ser possível de ser utilizado no intuito de não permitir que um grupo de jovens se perdesse em uma flores foi utilizado. Mas, ainda assim, eles se perderam.

Mas, enfim, Bruxa de Blair (em uma feliz utilização de um nome mais clean para diferenciá-lo do original) até que funciona ao emular as principais características de seu antecessor do século passado e, pelo menos, poupa o espectador de overdoses de câmeras trêmulas, uma vez que o seu original ficou notório por levar muitos espectadores a sentir enjôos por conta do excesso de imagens tremidas e rápidas, algo que se repetiu em filmes como Voo 93 e Jason Bourne, ambos de Paul Greengrass.

"Não entre após o anoitecer": mas será que alguém segue conselhos?
Na continuação, o irmão da jovem Heather, protagonista do primeiro filme, resolve investigar o seu desaparecimento após um suposto vídeo da casa onde ela teria sido vista pela última vez surgir no youtube. Munido de todo o equipamento citado acima e da companhia de mais três amigos, além do casal de guias responsável pela publicação do vídeo on line, ele resolve adentrar na floresta de Black Hills, em Maryland.

Curiosamente, um dos atrativos do filme está na observação do espectador para com os truques de montagem e registro utilizados pelo diretor Adam Wingard, cuja carreira é dominada apenas por filmes de terror. É interessante notar como os cortes das imagens seguem precisamente uma captação subjetiva, utilizando somente as câmeras inseridas naquele universo. Apesar de em alguns momentos se notar certos ajustes no enquadramento que difere da posição onde se encontram os personagens (nada que não seja perdoável), o filme consegue se manter fiel a esse seu artifício durante toda sua breve hora e meia.  

No entanto, o som diegético da obra incomoda em certos aspectos justamente por quebrar essa ideia de imersão. Em certos momentos, ao se virar para a câmera de alguém que o chama, certos personagens geram um susto no espectador, algo que é acompanhado de um som que, de modo deslocado, chama a atenção do seu interlocutor (e do público, friso) para, logo em seguida, ser esquecido. E perceber que isso volta a se repetir outras vezes sem qualquer cerimônia acaba por quebrar essa boa sintonia que o filme possui.

O caos impera, mas o show tem que continuar: vamos filmar!
Outro ponto que é impossível de não se observar está em seu clímax, quando certa personagem, dentro de um momento de puro pânico e horror, se arrasta por um claustrofóbico subterrâneo, em meio a choro, grito e desespero, mas se preocupa em atirar a câmera à frente para captar sua trajetória.

Excetuando esses detalhes, o filme cumpre sua função de causar medo no espectador, principalmente por seus momentos finais, quando descobrimos um pouco mais sobre a tal entidade.

São outros tempo, diferentes daqueles do final dos 1990. O filme, claro, não deve ter o mesmo resultado nas bilheterias, mas, enfim, até que vale a ida ao cinema.

   

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Cachoeira Doc 2016 - Mostra Competitiva VI


Procura-se Irenice (São Paulo, 2016, 25min) Direção: Marco Escrivão e Thiago B. Mendonça.

O ano de 2016 trouxe para o Brasil as Olimpíadas. Seria uma excelente oportunidade para o Comitê organizador dos jogos fazer justiça à figura de Irenice Rodrigues, a corredora recordista que representaria o Brasil no evento que, em 1968, foi realizado no México. Infelizmente, a “atleta apagada” da história continuaria com essa alcunha se não fosse pelo obrigatório curta documentário dirigido por Marco Escrivão e Thiago B. Mendonça.

À frente do seu tempo por conta de suas opiniões decididas e postura de não se rebaixar diante do autoritarismo dos militares, Irenice é trazida de volta à vida através dos depoimentos de pessoas que a conheceram à época em que seus recordes na pista de atletismo eram constantes. Além disso, a dupla de diretores insere a performance da bailarina e atriz Kanzelumuka, que simboliza de modo eficaz a presença da atleta, cuja mordaça simbólica é apresentada, aqui, de forma real, e a bandeira para qual ela tanto queria prestar a reverência do alto de um pódio, acaba sendo a mesma que a amarra, a impedindo de correr.


Vitima de um racismo escancarado no período em que treinava, sendo diversas vezes questionada acerca de sua presença nos locais como alguém que, ao invés de reconhecida como uma atleta vencedora, seria empregada doméstica de alguma família abastada que estaria presente, Irenice era uma vitima de seu país, um Brasil que naufragava diante de um poderio covarde e autoritário, ao invés de preservar seus ícones mais representativos.

“As pessoas só atiram pedra na árvore que dá fruto”, afirma uma das fontes entrevistadas, explicando que os argumentos de Irenice acerca do cenário de influência maléfica do militarismo no esporte e sobre o modo vexatório como ela era tratada no seu meio, dentre outros pontos pertinentemente levantados, eram argumentos válidos, que, em caso de reverberações, daria, sim, frutos. Então, o apedrejamento oriundo dos poderosos não tardou.

A mordaça e a bandeira que se tornaram sua prisão
“A história da Irenice é uma história de uma punição. É a história de uma segregação. De uma exclusão. É a história de um apagamento”, frisa uma das fontes na fala que fecha de modo marcante a obra.

A definição perfeita de uma saga que merecia esse registro trazido à tona no documentário.

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(A Noite Escura da Alma, Bahia, 2015, 85min) Direção: Henrique Dantas.

Abordando de forma precursora a história da ditadura militar na Bahia, A Noite Escura da Alma, de Henrique Dantas, é uma obra que, mais do que a reflexão, traz ao espectador, principalmente aos nascidos ou que vivem na Bahia há muito tempo, um sentimento de revolta para com todos os mandos e desmandos que o estado sofreu durante os anos em que viveu sob a sombra do Carlismo.

Reafirmando o fato de que a arte é uma das armas mais poderosas contra a opressão, o diretor Henrique Dantas acerta ao utilizar performances de atores no intuito de denotar a brutalidade dos métodos da ditadura e as ações dos torturadores. E isso sem a necessidade de ser panfletário em seu discurso ou gratuito em suas imagens e no modo como a mensagem é passada à platéia.


“Quando você se propõe a contar uma história da ditadura militar na Bahia, uma história que você não possui uma imagem sequer, uma vez que tudo foi apagado, tudo se torna mais difícil”, explica Henrique. “Você não encontra nada nos arquivos de televisão daqui da Bahia. Só se acha jornais, e, ainda assim, o que se permitia que saísse impresso na ocasião”, complementa o cineasta. Acaba que, A Noite Escura da Alma se torna um filme no qual toda a indignação e ojeriza que ele gera contra os representantes políticos da época surgem não através de fotogramas de arquivo, mas, sim, através de palavras. Em discursos pesados vindo de vozes inicialmente sem rosto e oriundas de pessoas que passaram pelo terror, o longa demonstra sua força. São depoimentos fortes, que constroem a narrativa para o espectador, o fazendo mergulhar nos mesmos porões onde aqueles cidadãos estiveram.

Na presença de personagens como Juca Ferreira, Lucia Murat, Emiliano José, Theodomiro dos Santos, Carlos Sarno, Haroldo Lima, dentre outros, a voz dos que sobreviveram ao terror daquele período ecoa pelas paredes do Forte do Barbalho, local oportunamente escolhido pelo diretor para captar os depoimentos. Era no lugar onde se concentrava a maioria das ações de repressão militar, onde as torturas aconteciam e assassinatos eram cometidos. O peso da captação daquelas entrevistas no Forte acaba por contribuir para a atmosfera do filme, mas, sem necessariamente explorar de modo displicente o emocional das suas fontes.

O silêncio imposto por um poder que controlava tudo 
Fortes em suas palavras, as vozes captadas por Henrique Dantas trazem fatos relevantes para nossa história, como a questão levantada por Theodomiro dos Santos, um dos presos à época e protagonista de uma das mais famosas fugas da penitenciaria Lemos de Brito. Em um dos trechos, Theodomiro aborda a questão da mão pesada do então governador (colocado no posto pelo ditador Emílio Garrastazu Médici) Antonio Carlos Magalhães, cuja perseguição deflagrada a qualquer um contra seu governo era notoriamente violenta e o fato de que boa parte da responsabilidade pela ausência de memórias relacionadas ao período ditatorial na Bahia se deve às ações perpetradas por ele.

Em uma época em que seu herdeiro se esforça para desvincular sua imagem à notória e contumaz truculência que se tornou marca de sua família, esse ponto de abordagem torna A Noite Escura da Alma ainda mais essencial. “Eu me lembro de ter ficado inseguro de inserir tal trecho no filme.”, afirma o diretor Henrique Dantas. “Na ocasião, eu liguei para o Theodomiro e falei: ‘Theodomiro, o filme está pronto. Mas tem uma parada que você fala e que coloca o ACM como assassino. E aí, meu velho?’”, continua Henrique. A resposta de Theodomiro é uma declaração que simboliza não somente sua postura decidida, mas, também, uma resposta contra os anos de silêncio forçado em que vivemos aqui na Bahia. “Ele chegou e disse: ‘Henrique, eu sou que nem índio. O que eu cuspo, eu não boto pra dentro de novo, não’. Eu me lembro que cheguei a me emocionar na ocasião”, recorda-se Dantas.

O diretor Henrique Dantas (Foto:Jackson Romanelli. Divulgação)
Trata-se de uma obra que gera no público uma reflexão urgente acerca do fato de que a Bahia é uma terra vitima da alegria, fato levantado por Dantas na sua narração inserida no começo do filme. Onde os problemas sociais acabam sendo irresponsavelmente escondidos por políticos que usam o carnaval e a alcunha que esse lugar possui como um fator de influência para deixar, por ainda mais tempo, a venda nos olhos de seu povo. Iludido por um suposto estado constante de felicidade (A terra da alegria, como diz a propaganda oficial), esse povo não se permite apurar seu senso crítico, deixando-se levar por uma memória curta ou apagada por interesses mesquinhos.

“Meu filme não tem a pretensão de colocar as pessoas dentro da memória, mas, ao menos, ele as risca, sabe? Como aquela riscada que você faz do seu nome e o de sua namorada em um coração, desenhado no muro de sua casa. É um pouco disso que meu filme faz. Ele pega aquela muro ali no meio do caminho, desenha um coração sangrando e coloca o nome dessas pessoas dentro”, afirma Henrique Dantas.

De fato, esse coração sangrando aqui na Bahia precisava ser trazido à tona, principalmente em um período como o atual. Um filme essencial.
                                                                    

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Cachoeira Doc 2016 - Mostra Competitiva V



Orestes (São Paulo, 2015, 93min) Direção: Rodrigo Siqueira.

Filme de suma relevância para um Brasil cujos extremos de sua população se digladiam entre um pensamento que busca compreender a origem da questão da violência e outro que, com olhos injetados e atitude fascista, exige, sem qualquer julgamento, a vida do réu como pagamento pelo seu crime, Orestes, de Rodrigo Siqueira, diretor do crucial Terra Deu, Terra Come, te coloca contra a parede.

Trata-se de uma obra essencial para um momento em que vemos torturadores assumidos subir em um púlpito de um plenário para prestar homenagem a assassinos seriais de um período sombrio da história. A reflexão por trás de Orestes reside justamente nesse contexto, o qual a (auto)análise dos representantes de nossa sociedade que se fazem presentes através de opiniões calcadas no radicalismo e que precisam ser revistas.

Ao se propor adaptar o mito grego de Orestes, personagem de Ésquilo que, na obra, mata a mãe para vingar seu pai e acaba sendo julgado por cidadãos de Atenas, Siqueira cria dois campos de análise. É quando o filme assume duas frentes de reflexão: uma explicita no sentido de se confrontar opiniões dissonantes da sociedade, intento alcançado em sessões de psicodrama nas quais se reúnem pais cujos filhos foram mortos em ações da polícia; ex-presos políticos e torturados na ditadura; a filha de uma militante assassinada no período e uma ferrenha defensora da pena de morte.

A militante pró pena de morte e seus argumentos falhos
A outra frente de reflexão possui um teor mais teatral e de acordo com a alusão literária que possui o título da obra. Aqui, um julgamento simulado e realizado na Faculdade de Direito da USP coloca o personagem de Orestes (aqui, acusado de matar o pai por conta do assassinato da mãe, uma militante contra a ditadura) como réu a ser julgado pela grande platéia presente, no qual os pertinentes discursos de um advogado de defesa e um promotor adéquam a história à realidade que se vê no Brasil. Em discursos eloquentes e repletos de profusão, vemos o mito proposto por Ésquilo se tornar uma metáfora ideal para uma das propostas de análise mais contundentes da obra, que é a questão da máxima do olho por olho e que o mais fraco seja esfacelado.

Nos momentos em que são abordadas as pessoas que compõem as sessões de psicodrama, o filme, de fato, demonstra sua força. São personagens repletos de dores, mesmo a representante do radicalismo pela pena de morte, alguém cuja máscara do pragmatismo não tarda a cair diante dos fatos que lhe são apresentados pelos outros presentes. No entanto, é na figura de Ñasaindy Barrett, uma das presentes, filha de Soledad Barrett, militante delatada pelo famigerado cabo Anselmo, e de José Maria, também assassinado pelo regime militar, que o filme encontra seu mais doloroso relato.

O julgamento simulado na Faculdade de Direito da USP
Apresentando suas lembranças embaçadas e construídas mais a partir de fotos do que propriamente de vivências com os pais, Ñasaindy confronta sua dor ao falar do tal delator, cabo Anselmo, que o filme exibe em uma entrevista concedida ao programa Roda Viva e cujo vídeo é exibido a partir de uma busca no youtube. Nas rememorações de Ñasaindy, o filme apresenta os traumas da perda de Soledad, brutalmente assassinada. Em certo momento, durante a sessão de psicodrama, um dos presentes assume o papel de cabo Anselmo, permitindo a Ñasaindy despejar palavras engasgadas. Momento deveras libertador tanto para ela quanto para o espectador.

Orestes acaba por ser um filme essencial não somente por funcionar como resgate da história e denúncia dos crimes de um período, mas por permitir a audiência a encarar e refletir dentro de suas próprias hipocrisias. A principal delas representada pela postura da personagem atuante na defesa da pena de morte, que, defensora de uma política de morte ao bandido a partir de um frágil discurso elitista, tem seus argumentos destituídos de qualquer moral a partir dos diálogos travados de modo enérgico com os presentes às sessões.

Em um grupo de pessoas no qual se encontram vitimas, além de pais e mães de outras vitimas, a força vista naqueles indivíduos para expressar suas contundentes e imprescindíveis opiniões contra o fascismo declarado de uma das presentes é a mesma força que a obra de Rodrigo Siqueira possui.

Força essa que nos empurra contra a cadeira durante seus breves 90 minutos, mas que nos sacoleja ao final para levantar e lutar com ainda mais ênfase contra esse regime opressivo que parece estar querendo voltar.

Mas não conseguirá. Não, mesmo!



Cachoeira Doc 2016 - Mostra Competitiva IV


Índios no Poder (Distrito Federal, 2015, 21min) Direção: Rodrigo Arajeju.

Representando o perfil de engajamento e relação com o presente momento de exclusão democrática  e política pelo qual passa o país, é pertinente que um curta como Índios no Poder seja exibido na quarta mostra competitiva do Cachoeira Doc 2015.

Abordando o fato de que o perfil dominante do plenário da câmara em Brasília é composto por pessoas brancas, pardos e negros, sem a presença de nenhum indígena a representar os interesses dos povos nativos do Brasil, o documentário traz posicionamentos contundentes acerca da perseguição executada por ruralistas e outros membros que compartilham dos interesses agrários dessa bancada, dentre eles a aprovação da PEC 215.

Polêmica pelo fato de que concede ao congresso o direito de votar sobre os interesses relacionados com a demarcação de terras indígenas, a Proposta de Emenda Constitucional prevê retirar do poder executivo as decisões exclusivas desse mérito, permitindo aos deputados influenciar nas decisões, algo que beneficia os ruralistas em sua totalidade.

O filme tem alguns momentos marcantes, como o que vemos um candidato indígena distribuir de mão em mão seus santinhos e conversa com possíveis eleitores em frente a cartazes de candidatos a presidente, em uma clara alusão ao domínio da máquina eleitoral que beneficia os endinheirados e torna a necessidade de uma reforma política ainda mais urgente. A cena remete a outra marcante, quando em A Cidade é uma Só?, de Adirley Queiroz, vemos o protagonista Dildo caminhar em frente a carreata da então candidata Dilma carregando seus poucos santinhos impressos.

Com imagens de arquivo do falecido deputado Juruna, o primeiro índio a ocupar uma cadeira na câmara, a obra consegue criar um discurso bem pertinente acerca da necessidade de igualar as vozes. Principalmente no atual contexto, no qual a liderança Kaiowa Guarani  é executada e a sanguinolenta e conveniente (para o agronegócio) PEC 215 segue em frente.

Índios e a representação da exclusão no cenário político nacional




Vozerio (Rio de Janeiro, 2015, 98min). Direção: Wladimir Seixas.

Filme de imagens impactantes e discurso poderoso, Vozerio aborda as manifestações ocorridas no período que antecedeu a copa do mundo no Brasil, ocasião em que diversas ocupações em defesa de minorias, que acabaram por ser enxotadas dos seus locais de moradia em nome do progresso e das melhorias relacionadas ao tal “legado” da copa e das olimpíadas.

Com depoimentos de vários membros dos movimentos de protestos, como o cartunista Carlos Latuff, cujo traço é o que melhor representa toda a realidade da opressão vista no Brasil e que teve seus desenhos censurados em algumas ocasiões, além do cineasta Silvio Tendler, que tem uma das melhores participações do filme ao ser indagado acerca de um processo policial que sofreu por convocar, via internet, manifestantes para comparecer em frente a um prédio onde simpatizantes da ditadura se reuniam.

Captação in loco e montagem eficiente dão ao filme uma narrativa frenética
Vozerio é um filme que tem em seu impacto imagético e em sua eficiente montagem seus maiores trunfos. Uma obra cujo discurso de luta contra a opressão é feito de forma tanto brutal, direta e seca, com suas imagens que causam estampidos, quanto de modo reflexivo, mas não menos desconfortável, a partir dos registros das performances de artistas na representação do modo como a dominação de um poder político excludente visava calá-los.

E isso é visto de modo deveras visceral, como quando são apresentadas performances de rua que envolvem corpos nus na sarjeta suja, sufocamento em sacos plásticos ou quando lábios são lacrados com costura para representar a intimidação do Estado através do silêncio forçado.  

Ouvindo diversas fontes a representar uma atuante massa contestadora do atual sistema político, Vozerio tem uma linha narrativa que caminha em direção à catarse de seu inflamável final. Com breves pausas na intensidade de suas cenas, o filme mantém-se, no entanto, em um ritmo enérgico constante, o que causa no espectador um desconforto bem-vindo, algo que o força a encarar aqueles fatos de modo reflexivo. E esse modo forçado é por demais bem-vindo, friso.

Apesar de tropeçar em certos momentos por conta do grande leque de fatos que deseja abordar (como quando deixa de lado os conflitos aqui para uma contextualização comparativa às guerras no oriente médio), o filme não perde seu ritmo, apostando de modo eficiente em seu maior trunfo, que são as imagens in loco. Sendo isso algo que funciona como um registro crucial do que acontecia no caos planejado das ruas e, tão importante quanto, o que acontecia ao redor delas, nas discussões intelectuais acerca dos fatos, nos planejamentos prévios na internet, a grande força diferenciadora contra uma televisão que só manipula.

Um filme de intensidade palpável. 


domingo, 11 de setembro de 2016

Cachoeira Doc 2016 - Mostra Competitiva III




Taego Ãwa (Goiás, 2015, 75min) Direção: Marcela e Henrique Borela

Dos mais simbólicos filmes da Mostra Competitiva do Cachoeira Doc 2016, Taego Ãwa registra a luta dos índios Avá na demarcação de suas terras e reconhecimento cultural de seu povo como pertencente àquele lugar, no interior de Goiás.

Munidos de imagens dos índios localizadas em velhas fitas VHS encontradas pelos diretores no prédio da Universidade Federal de Goiás, os irmãos Borela decidem por levá-las ao povo indígena no intuito de compartilhar aquelas lembranças, bem como compreender sua luta mais a fundo.

Trata-se de um filme cuja generosidade e apuro na sua confecção denotam muito do respeito dos cineastas para com aquelas pessoas, uma vez que a abordagem inicial com eles é vista apenas como uma apresentação, um reencontro propriamente dito deles com o seu passado registrado nas fitas. Parte desse passado, inclusive, bastante doloroso ao trazer à tona lembranças da invasão armada que aconteceu em 1973, na qual muitos membros da tribo foram assassinados.

A identidade cultural representada por um sorriso
No observar das imagens, percebe-se um tocante reconhecimento. “Esse é o vovô?”, pergunta uma voz juvenil. “Esse é o meu pai”, observa uma senhora indígena enquanto se admira com aquele reencontro. Um dos personagens exibidos tanto nas imagens de arquivo quanto no período atual mantém viva a tradição de pintar os companheiros de tribo com tinta oriunda do jenipapo. Em um símbolo de resistência cultural, os vemos registrar seus costumes, entre sorrisos de reconhecimento, algo que é brilhantemente captado pelos diretores no momento em que o ancião da tribo, Tutal, tira toda a roupa sob o argumento de não ter vergonha de mostrar seu pênis. Daqueles tesouros fílmicos que surgem para os cineastas na hora e momento certos, ainda mais em uma obra que aborda justamente a questão da identidade indígena.


No aspecto de afirmação e reconhecimento cultural, Teago Ãwa exprime um cuidado crucial em seus registros. Trata-se de um trabalho que, apesar de representar um olhar do homem branco sobre o indígena, não possui os defeitos comuns a certo tipo de abordagem predatória. Longe disso. Ao optar por apresentar as imagens de arquivo àquele povo, captar suas reações e a partir disso trazer à tona uma nova narrativa, Marcela e Henrique Borela acertam por suscitar a discussão sem a necessidade panfletária ou sensacionalista, apesar do tema delicado em sua inserção.  Em um filme que aborda um povo chamado de “índios invisíveis” por conta do modo como ele se inseriu a sociedade branca, além do fato de sofrerem duplamente com o racismo por serem chamados de índios negros, o resgate proposto pelo filme acerta em sua premissa provocativa.

Obra essencial em um contexto de resistência tão imprescindível em tempos de cerceamento de liberdades e direitos como os atuais.

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GRIN (São Paulo, 2016, 41min). Direção: Roney Freitas e Isael Maxakali.

Em um dos depoimentos captados pelos diretores Roney Freitas e Isael Maxakali, Totó, um dos índios que fizeram parte da GRIN - Guarda Nacional Indígena, agrupamento militar criado na ditadura, hoje já idoso, relembra o caso do assassinato sádico de um dos seus companheiros. Forçado a beber leite fervente para, em seguida, tomar água fria, o homem não conseguia comer por conta das queimaduras internas, algo que o leva a adoecer e, consequentemente, morrer.

Trata-se do momento de maior impacto em GRIN, documentário que aborda, a partir de depoimentos dos que presenciaram o período, a criação da tal guarda. Projeto que trazia em sua essência a brutalidade insana dos ditadores, representava de modo oficial a postura desumana e desrespeitosa do Estado diante da cultura indígena. Ao descaracterizá-la de seus costumes e hábitos, retirando-a de seu meio e a colocando sob as vestes do militarismo, a GRIN representava a destruição da identidade de um povo, algo que acabava por ser perpetuado para gerações futuras daquelas pessoas, uma vez que muitos dos bebês nascidos à ocasião recebiam nomes dos militares atuantes no período, a exemplo da alcunha de dos algozes do período, capitão Pinheiro.

Com a presença do experiente documentarista Isael Maxakali, representante direto do povo abordado no filme, a captar os depoimentos, o diretor Roney Freitas, através das marcantes entrevistas dos integrantes da tribo, cria uma narrativa fluída, que denuncia a irresponsável e perversa descaracterização daquelas pessoas. Mantidas sob um a rédea da submissão, eram colocadas reféns até mesmo do modo de consumo capitalista que, excludente por natureza, ainda os colocava em patamar mais inferior, uma vez que os militares criaram uma moeda específica para os índios utilizarem na região, algo que os controlava de modo ainda mais pernicioso.

Através dos depoimentos dos mais velhos da tribo, toda a barbárie pode ser presenciada. Desde os métodos de tortura física, até a forma como Pinheiro se dizia dono daquelas pessoas, algo evidenciado de forma curiosa no depoimento de um dos idosos, Rondon. Em suas palavras, um estranho respeito pela figura de Pinheiro surge, afirmando que o homem protegia os Maxakali. Fica a dúvida acerca de uma possível senilidade ou um comportamento de respeito cego pelo seu opressor, seja por razões de um medo institucionalizado ou por algo que, dada às devidas proporções, se aproximaria da síndrome de Estocolmo. 
Uma cena cujo impacto desnorteia principalmente pela percepção de que a tortura e influência psicológica do branco eram por demais pesadas, algo evidenciado pela afirmação final de Rondon, a de que ainda se considera um soldado.

Um filme cuja reflexão se dá de modo doloroso a partir do momento em que se percebe que a identidade de um povo era retirada não somente através da violência mas, por vezes, intelectual.  

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Cachoeira Doc 2016 - Mostra Competitiva II


Em sua segunda Mostra Competitiva, o Cachoeira Doc apresenta mais três curtas.  Abaixo, discorro acerca deles. Confira! 

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Tança (Minas Gerais, 2015, 31 min) Direção: Irmandade dos Atores da Pândega e Associação Quilombola Mato do Tição.

A reconstrução de uma personagem através apenas dos relatos das pessoas que a conheceram ou que apenas cresceram em contato com a lenda que sua figura representa. O grande mérito de Tança, curta dirigido pela Irmandade dos Atores do Pândega e pela Associação Quilombola Mato do Tição está na fato de conseguir manter viva a memória da matriarca do Quilombo do Matição, Tança, que teria vivido por 130 anos durante o período da escravidão.

Através de depoimentos de seus descendentes mais velhos (muitos deles com dificuldades em suas falas e locomoção), pessoas que a chamam de tia Tança, em uma fala cujo carinho do seu tom denota justamente o respeito que a matriarca ainda emana entre os seus, o filme consegue levar o espectador a uma reconstituição de sua figura, algo que acaba por suplantar qualquer necessidade de imagens de arquivo para ilustrar a sua persona.

Do mesmo modo, os depoimentos lúcidos dos idosos colaboram para uma reconstituição detalhada do quilombo em seu período de existência, mantendo viva a sua memória, algo que o curta representa como uma de suas missões.

Tança é o tipo de trabalho cuja recompensa está neste fato. Manter viva para as gerações futuras e ligadas àquela história a importância da missão de sua matriarca na luta contra a opressão.

No momento em que seus descendentes recebem um retrato falado de Tia Tança e seus olhos chegam a brilhar com a precisão do trabalho a rimar em suas lembranças, é quando o filme alcança seu principal intento. O de reencontro e de resgate.

Os descendentes de Tia Tança mantêm viva sua história



Há Terra! (Distrito Federal, 2016, 12min) Direção: Ana Vaz.

Um filme de comunhão entre os elementos que o compõem, no qual a presença física de uma personagem feminina serve como seu fio-condutor, levando o espectador a acompanhar sua perseguição pela relva enquanto a mesma simboliza diversos elementos da cultura popular oriunda o sertão.

O curta desenha de modo sutil suas referências culturais, inserindo contos do imaginário, como o representado pela história da mulher picada por uma cobra, cujo pé ferido pela peçonha do animal acaba por inchar em momentos distintos e relacionados sempre à passagem das fases da lua. Do mesmo modo, o filme aborda de modo sutil, e sem ser panfletário, a violência rotineira na vida desses sertanejos, como quando traz as palavras das pessoas acerca de um major acusado de roubar terras através da violência.

Além disso, Há Terra!, em seu ode proferido de modo constante durante o filme, juntamente com ordens de “remem!”, traz, ainda em sua sutileza distante de qualquer teor artificial, uma oportuna observação voltada para a importância providencial de uma reforma agrária.

Somando-se a isso, as inserções referenciais ao cinema do português Manoel de Oliveira corroboram uma ideia de resistência deveras urgente.

Um filme cujo impacto visual encontra vazão na relevância de sua mensagem sem a necessidade de uma narrativa óbvia.

"Encontro e caça: um equilíbrio entre personagem e paisagem" 



Tekowe Nhepyrun: A Origem da Alma (Paraná, 2015, 49min) Direção: Alberto Tavares.

Corroborando a premissa da edição do festival em optar por exibir trabalhos cujo engajamento social e político é evidenciado no registro das lutas de minorias em sua auto-afirmação, Tekowe Nhepyrun, juntamente com Voz das Mulheres..., é outra produção realizada por índios a abordar o esforço pela continuidade de uma cultura que corre o risco de ser esquecida.

Diferente do outro curta citado, cujo viés tratava da luta pelos direitos e conquistas das mulheres indígenas, A Origem da Alma aborda a questão dos métodos medicinais realizados por membros da tribo, bem como o hábito da alimentação natural como pontos de comunhão mística em uma união indissociável entre a matéria e o espírito.

É um filme cujo impacto dos depoimentos dos mais velhos representantes da aldeia Yhowy, no Paraná, trazem a reflexão proposta pela obra. Algo que contexto do acompanhamento de uma grávida por uma parteira e um rezador acaba por ratificar em sua proposta reflexiva.

Um filme que acerta por apresentar a cultura de um povo sem a necessidade de confrontá-la em uma comparação para com a do povo opressor. Cabe ao espectador criar qualquer relação, sendo conveniente salientar o quão isso seria desnecessário. 

Tradição e conhecimento em costumes indígenas 

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Cachoeira Doc 2016 - Mostra Competitiva I


A sétima edição do Cachoeira Doc teve início no último dia 06 de setembro e trouxe uma programação bastante pertinente e repleta de filmes com cunho de lutas pelos direitos das mulheres, pelos direitos dos índios, além da importante necessidade de não se deixar esquecer das barbáries da ditadura militar no Brasil. 

Além disso, a curadoria do evento selecionou obras bem atuais para com o período fascista e pós golpe que vivemos, filmes que trazem à memória as manifestações de 2013 e a afirmação de que a luta ainda deve persistir.

Abaixo, textos referentes à primeira Mostra Competitiva de Curtas, ocorrida no dia 07.   


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Onze (Ceará, 2016, 26min) De Coletivo Nigéria, Coletivo Zóio e Vez das Comunidades.

Registro marcante de depoimentos de amigos e familiares de onze jovens inocentes assassinados por policiais em um bairro periférico de Fortaleza, a onze de novembro de 2015, no massacre que ficou conhecido como Chacina de Messejana, Onze acerta ao conseguir transmitir para o espectador toda sensação de inércia que aquelas pessoas se vêem diante.

Trata-se de um filme visceral não somente pelo seu modo de captação, como também pelo timing dos realizadores, membros de coletivos da capital cearense, que estiveram presentes nos dias e meses que se seguiram à chacina, acompanhando os protestos e o desenlace das investigações.

Podendo facilmente cair na armadilha da manipulação emocional dos entrevistados, os realizadores optaram por um caminho diverso, visando captar as falas das pessoas próximas às vitimas sem necessariamente focar em lágrimas, apesar de ser inevitável que esse resultado seja encontrado em depoimentos.

No entanto, mesmo quando essa reação é exibida, Onze a equilibra de modo eficiente, preferindo, por exemplo, respeitar a dor da irmã de um dos jovens mortos, mantendo seu depoimento não muito longo e contrapondo-o à contundente e sóbria fala de um pai que, ao exibir o cordão que o filho usava no pescoço no dia da sua morte, contrapõe a fala cínica de um dos policiais assassinos que afirmou que o rapaz tinha uma arma. “Isso parece uma arma? Porque, além da roupa do corpo, essa era a única coisa que meu filho tinha”, observa o senhor. Em seguida, sua fala torna seu depoimento ainda mais marcante: “Estão matando jovens de bem. O que será do futuro se os jovens de bem estão sendo mortos?”.

A pergunta se torna ainda mais relevante diante do perfil burocrata da fala do secretário de Segurança Pública do governo cearense. Proferido um mês depois da chacina, na escola onde um dos jovens assassinados estudava, o discurso do homem busca se basear na complexidade das investigações para justificar a demora na averiguação e punição dos culpados, policiais que se vingaram pela morte de um colega de farda que estava à paisana e foi vitima de um assalto na localidade.

Em tempos fascistas como os atuais, um filme necessário.

Depoimento da namorada de uma vitimas é captado


Sepulcro do Gato Preto (São Paulo, 2015, 24min) De Kaneda Asfixia e Frederico Moreira.

A verborragia e o excesso de narração em off, além dos trechos cuja a inserção de letreiros auto explicativos (e ainda lidos em voz alta) são opções que terminam por prejudicar o desenvolvimento desse curta, que tem na supostamente surpreendente mudança de foco narrativo em sua premissa seu problema inicial.

Aqui, o desaparecimento de um jovem artista grafiteiro na periferia de São Paulo leva seus amigos a iniciar uma busca pelo rapaz, seguindo seus últimos passos conhecidos e levando-os até uma abandonada fábrica de cimento, local onde ele teria ido para desenhar nas paredes.

Desde seu começo, com o próprio narrador a apresentar essa possibilidade como absurda por conta da distância da tal fábrica para o local onde ele vivia, o desenvolvimento do filme é comprometido. No entanto, relevando esse contexto inicial de descoberta, o tema de denúncia de toda uma comunidade sendo vitima da especulação imobiliária, da ação de grileiros e da opressão fascista policial torna o seu resultado bem interessante.

A tal fábrica de cimento apresentada no começo vem a ser a Cimento Portland Perus, maior produtora no mercado nacional, situada na localidade de Perus, SP, e controlada pelo bilionário investidor J.J. Abdalla (aqui, muito pertinentemente representado por abutres), que a comprou no começo dos anos 1940, tornando-a uma potência e sofrendo grande quantidade de processos trabalhistas, o que a levou a fechar quarenta anos depois, na década de 1980. O curta apresenta uma série de denúncias embasadas em depoimentos das pessoas que vivem na região e que até hoje lutam para ter a posse de suas terras.

Com falas marcantes que denotam a brutalidade policial e a perda de direitos sofrida de modo violento pelos habitantes da região, o curta encontra seu trilho quando passa a focar justamente nessas denúncias. 

Uma pena que a abordagem não foi mais direta, precisando de um prólogo que envolveu uma trama logo esquecida.

Além disso, teria sido pertinente ouvir o lado de lá deste caso. Seria interessante ver encurralados os supostamente intocáveis herdeiros do império do abutre Abdalla.

Grupo de moradores da comunidade de Perus e sua luta pelo direito às terras


Quem matou Eloá? (São Paulo, 2015, 24min) De Lívia Perez.

Talvez o mais impactante e reflexivo curta da primeira mostra competitiva (algo denotado pelos longos aplausos ao final da sessão), Quem matou Eloá? tem em sua montagem rápida e narrativa intercalada entre imagens de noticiários, programas vespertinos e os depoimentos de especialistas um eficiente discurso de denúncia da violência contra a mulher.

Vitima do mais longo caso de sequestro seguido de cárcere privado no país, Eloá, uma adolescente de quinze anos, foi mantida presa pelo namorado, Lindemberg Alves, em outubro de 2008, durante cem horas, sendo assassinada por ele com um tiro na cabeça e outro na virilha no momento em que a polícia invadiu o local.

A diretora Lívia Perez cria uma interessante linha de denúncia ao utilizar os trechos dos programas televisivos que ilustram o modo desumano e sensacionalista como os canais de TV abordaram o caso, minimizando a ação criminosa de Lindemberg ao reduzi-la a um simples caso de ciúme e amor não resolvido e, por vezes, colocando-o no papel de vitima.

Todo o caso foi transmitido ao vivo pelos canais, colaborando para evidenciar ainda mais a vaidade do assassino, que dava entrevistas por telefone e se vangloriava por tamanho destaque que recebia da mídia.
Erros seguidos de erros levaram ao desfecho do desastre na resolução do caso. A partir de pertinentes depoimentos, são salientados fatos como a suposta coincidência da invasão da polícia ter acontecido em horário de grande audiência televisiva; a questão do assassino ter atirado na virilha da menina, denotando seu comportamento misógino e o perfil irresponsável dos programas, que ligavam para a casa da vitima no intuito egoísta de conseguir um furo jornalístico.

Em certo momento, um dos convidados de um programa vespertino diz esperar que os dois ficassem juntos ao final daquele caso, algo que confirma justamente a ideia que o documentário denunciou: a de cerceamento de direitos femininos em detrimento da vontade dominadora do homem.

Ao final, a sensação é de justamente observar que toda a manipulação televisiva destes mesmos veículos se tornou algo incessante, sendo casos como o da jovem vitima só mais um capítulo em tramas que apenas buscam ibope de audiências ignorantes.




Voz das Mulheres Indígenas (Bahia, 2015, 17min)

Apesar da importância de seu tema e da pertinência de sua proposta, o curta realizado por mulheres de comunidades indígenas acerca da presença feminina nos movimentos que buscam garantir os direitos dos seus povos, peca pelo bombardeio de depoimentos sem necessariamente seguir uma linha narrativa, algo que torna confusa a assimilação de cada discurso pelo espectador.

Além disso, é perceptível certo amadorismos (algo que não desmerece sua proposta, mas, sim, sua eficiência) e estrutura batida de captação de opiniões, com discursos sendo registrados de modo mecânico e não encontrando em sua montagem uma forma de fluidez que permita um desenvolvimento de sua mensagem.

Ao terminar a exibição, sabemos se tratar de um tema importante para o atual contexto de afirmação dos direitos do índio perante a sociedade (e, ainda mais importante, dos direitos das mulheres indígenas), no entanto, pouco se absorve de seu contexto.    

Depoimentos exibidos de modo não muito fluído acaba gerando confusão