quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Cineclube Glauber Rocha - Era uma vez no Oeste


Fotos do evento: Lara Carvalho

Falar em público é complicado. Falar em público sobre um gênero tão rico quanto o Western é ainda mais complicado. Agora, imagina falar em público sobre Sergio Leone e sua obra máxima, Era uma vez no Oeste. A noite de 26 de agosto, no Itaú Glauber Rocha, teve momentos de pura imersão cinematográfica, encantamento diante de tamanha perfeição de um filme e, digamos, momentâneo pânico pelo fato de precisar exprimir ideias acerca de um artista que tanto admiro quanto Sergio Leone em frente a uma platéia atenta. Mas, nada que não passasse em poucos minutos após o debate engrenar da forma como ele foi planejado.


Público presente para o debate pós filme
A proposta sensacional do Cineclube Glauber Rocha de reunir um público apaixonado por cinema, uma obra marcante em condições fantásticas de áudio e imagem, e alguém para conduzir o encadeamento de ideias sobre aquele trabalho, já se consolida nesta sexta sessão. Com o formato planejado pelas produtoras Tais Bichara e Lara Carvalho, e pelos curadores Cláudio Marques e Marília Hughes, e que remete ao Cineclube original da década de 1950 que o então Cine Guarani possuía sob a batuta do crítico Walter da Silveira, o nosso atual Cineclube é o que de melhor se encontra no leque de opções cinéfilas de Salvador.

Breve nervosismo diante de um tema tão grandiosos quanto Sergio Leone

Pouco antes do papo pós filme começar, lembrei que, coincidentemente, exatos quatro meses antes eu havia conversado pela última vez com João Carlos Sampaio. O papo aconteceu ali mesmo, no Espaço Itaú Glauber Rocha. Papeamos sobre diversos assuntos e, claro, sobre o cineclube, que começaria na semana seguinte com a exibição de Laranja Mecânica, do Kubrick, e debate mediado pelo próprio João. Eu, já um tanto ansioso pela ocasião de me postar em frente à plateia, perguntei a JC como ele, que já tinha tantos anos de prática, fazia. A resposta não poderia ter sido melhor ou mais de acordo com a personalidade adorável de Janjão: “Eu sei lá, nego. Apenas chego lá na frente e falo”, ele disse, com aquele sorriso de canto de boca que lhe era tão característico. Eu apenas sorri e entendi o recado. Bastava manter a calma (difícil) e expressar as impressões sobre a obra. Disse a João que o projeto era foda. Sensacional, mesmo. Ele concordou e falou algo ainda mais de acordo com seu senso de humor único: “pois é, nego. A ideia é muito boa, mesmo. Reunir um público antenado e chamar gente com carisma, cinesmática e bacana para explanar sobre os filmes exibidos é algo sensacional. Pena que não acharam ninguém e tiveram que chamar você, eu, Rafael Saraiva, Rafael Carvalho...”. Esse era o João que eu tanto admirava. E foi legal ter pensado nele no momento em que eu me postei lá na frente.

Harmônica e Cheyenne: vingança soturna e carisma irônico
A exibição de Era uma vez no Oeste foi como um retorno pra casa. Já é clichê dizer que é no cinema que obras como essa devem ser testemunhadas. Mas são poucas as que seguem tão à risca esse condicionamento. As marcas do modo Sergio Leone de se fazer cinema estão incrivelmente evidentes neste filme. E vê-las naquela tela gigante da Sala 1 do Espaço Itaú Glauber Rocha nos traz a percepção completa deste modo obrigatório de testemunho. As panorâmicas do Monuent Valley mostrando as intenções de Leone em prestar, com seu filme, um tributo a mestres anteriores como John Ford e Howard Hawks; os supercloses sinônimos de seu nome como cineasta; as marcas pesadas nos rostos de Charles Bronson, Henry Fonda e Jason Robbards denotando justamente a história de vida marcada pela violência daqueles personagens. Claro, há, também, a beleza estonteante de Claudia Cardinale, que parece nunca ter estado tão linda quanto neste filme. E, obviamente, os quatro temas musicais criados por Enio Morricone, um para cada protagonista, conseguem oscilar de forma sublime entre a emoção de Jill, a ex-prostituta vivida por Cardinale; a tensão que a vingança perpetrada por Harmônica (o matador vivido por Bronson); o terror da presença de Frank, o assassino encarnado por Fonda, e o toque de comédia que Cheyenne (Robards) traz em seu personagem. As músicas são orgânicas e criam uma identificação com cada um deles, destacando cada tema.

Estonteante: Claudia Cardinale nunca esteve tão linda
Não bastando somente os temas musicais, Morricone traz em seu trabalho um desenho de som inspirador, que valoriza este elemento de modo primordial, criando sequências como a de abertura, quando quase treze minutos de filme são preenchidos somente com sons diegéticos oriundos apenas dos elementos materiais em cena. Há outros momentos, como quando conhecemos Cheyenne quando este adentra na taverna após escapar de uma escolta policial ou quando as cigarras da fazenda McBain param de cantar prevendo a morte que se aproxima que nos faz perceber esse cuidado com o uso do som no filme como motivo de regozijo. Além disso, há os raccords sonoros encantadores, como quando há uma união entre o som do tiro que mata o pequeno Timmy com a chegada do trem de Jill; ou o trem de Morton com o serrote na construção da ferrovia. São pequenos detalhes que nos faz perceber o apuro e cuidado de um mestre na criação de sua obra. É notória uma frase de Leone que dizia que 40% de um filme é música. No entanto, nos outros 60%, ele também não decepcionava.

No caráter imagético, ele tinha uma habilidade incrível de equilibrar cenas panorâmicas de paisagens com os rostos marcantes dos personagens. Esses rostos, marcados pelo sol forte e pela passagem do tempo, acabam servindo de peças na construção visual do filme. O equilíbrio dos dois elementos encontrado aqui é visto em cada uma de suas composições cênicas. São detalhes que abordam a aridez daquele universo e o seu reflexo físico nos personagens.

Henry Fonda perde sua face de mocinho na pele do matador Frank
A orquestração da obra de Sergio Leone, com seus personagens em passos lentos, caminhando em direção à morte, quase que dançando com ela ao som da música de Enio Morricone, é outro ponto que chama a atenção. Sua mise en scene é perfeita. Há momentos como aquele quando a câmera sobe por sobre a estação de trem em uma panorâmica da cidade de Flagstone em que, com o crescente musical do momento e a apresentação daquele ambiente, fica difícil não perder o fôlego tamanha precisão dos movimentos. 

Creio que a sessão de 26 de agosto foi a que mais fez jus à proposta de exibir clássicos na tela do Cineclube Glauber Rocha. A grandiosidade da obra prima de Sergio Leone pedia por isso.

Mais uma vez, meu muito obrigado a Tais, Lara, Cláudio e Marília por esse presente e pelo convite para fazer parte disso. 





Nenhum comentário:

Postar um comentário