Por João Paulo Barreto
É no montar das peças a definir a personalidade doentia da escritora
best-seller Delphine Dayrieux (vivida
por Emmanuelle Seigner) que reside a captação total da atenção do espectador
que assiste Baseado em Fatos Reais, novo
trabalho de Roman Polanski, cujo roteiro foi escrito em parceria com o diretor
Olivier Assayas. Muito além da simplória e clara percepção de um final um tanto
previsível (algo que não chega a diminuir o filme, friso), o longa traz na
análise das amostras dos elementos psicológicos que torturam física e
psicologicamente sua protagonista seu maior trunfo. Passo a passo, o espectador
atento vai observando as rimas temáticas e visuais daquele universo de
introspecção ganhar reflexos reais na vida da própria escritora. E é justamente
neste ponto que a obra de Polanski encontra sua força.
Vitima de um bloqueio criativo e torturada pelo trauma do
suicídio cometido por sua mãe, cujo relacionamento acabou por se tornar tema do
seu mais recente livro, a autora sofre um esgotamento psicológico que reverbera
em sua própria sua própria rotina de trabalho. Incapaz de lutar contra a tela
branca do computador, Delphine cede à curiosidade e decide se encontrar com uma
fã que a abordara durante uma sessão de autógrafos. Misteriosa e invasiva, Elle
(Eva Green, que usa bem a magreza e os olhares na sua construção) a atrai não
somente por representar a figura enigmática que transparece, mas por ser uma
crítica sincera de seu próximo livro, ainda em planejamento. Alguém capaz de
agir além da condescendência e da admiração, apontando defeitos e pontos de
melhoria. Rapidamente, a amizade entre ambas cresce e passa a ganhar contornos
de uma dependência afetiva um tanto doentia, ao ponto de Elle se mudar para o
apartamento e se auto-intitular sua secretária e a organizadora de tudo
relacionado ao trabalho de Delphine.
A invasiva aproximação de Elle na vida de Delphine |
BOWIE E O JOGO PSICOLÓGICO
A partir deste ponto, passamos a observar um jogo psicológico
que, apesar de por breves momentos se insinuar com tendências sexuais, logo
percebemos se tratar de algo bem mais complexo. Em seu roteiro, Polanski e
Assayas, a partir da obra escrita por Delphine de Vigan, constroem um mosaico
de pistas que, como já dito, mesmo caminhando para um desfecho previsível, traz
para o espectador uma série de ricos elementos que tornam o analisar daquela relação
parasitaria entre Elle e seu ídolo um exercício brilhante. A começar pelo modo
como, gradativamente, Elle se torna Delphine. A escritora, tomada por tamanha
fragilidade física e emocional, permite que a jovem se apodere de tudo que lhe
pertence. Desde a senha de seu computador (em uma clara alusão à capacidade
intelectual da autora), passando por objetos pessoais, como uma caneca de café,
até chegar a um dos elementos mais simbólicos daquele contato: uma camisa com a
estampa de Blackstar, último disco
que David Bowie lançou em vida.
Ao colocar a garota trajando aquela especifica peça do
vestuário de Delphine, algo que representa não somente uma roupa que a autora
usa em sua intimidade, mas um símbolo de sua personalidade e de alguém que tem
como ídolo, Elle se apossa, também, dos gostos pessoais da mulher. E sendo tal
elemento uma imagem que remete a um disco cuja canção título aborda justamente
a possessão de uma pessoa quando esta vem a deixar o próprio corpo, bom, não há
fragilidade em qualquer desfecho de história que consiga tirar o mérito de tal
construção do roteiro de Polanski e Assayas.
RATOS NA CABEÇA
A luta psicológica entre as duas mulheres caminha, assim,
para um choque doloroso, com a violência dos atos de Elle contra a escritora
extrapolando qualquer suposto cuidado que a mesma venha a possuir no socorrer
da convalescente mulher. Porém, neste embate, Polanski e Assayas ainda
encontram espaço para mais uma eficiente metáfora retratando o modo aquele
relacionamento representa, na verdade, uma autossuperação para Delphine. O
momento em questão refere-se à fobia com os ratos existentes em um porão,
contra os quais Elle demonstra pânico e total incapacidade de lidar. Tal comportamento
leva a própria escritora, doente e incapaz de se mover normalmente, a descer ao
local para depositar veneno e armadilhas, em uma clara alusão ao mergulho que a
mesma tem de fazer em sua própria psique para resolver aquele conflito.
Mesmo reconhecendo a fragilidade de uma já esperada surpresa
final em sua história, observar essas nuances no roteiro de Assayas e Polanski,
juntamente com o significado masoquista dos atos da protagonista e o modo como
ela mesma consegue superar aqueles conflitos internos, tornam Baseado em Fatos Reais uma experiência
das mais satisfatórias.
*Crítica originalmente publicada em A Tarde, dia 11/04/2018
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