Uma elipse de 30 anos na história. Expresso Polar, Os Fantasmas de Scrooge e A Lenda de Beowulf, todos dirigidos por Robert Zemecks na década passada, demonstram a viabilidade de construir boas narrativas usando a tecnologia da captura de movimento em atores e a recriação deles em uma mescla de live action com animação. Golum e Avatar ratificaram isso. Para adaptar a obra de Hergé, Spielberg declarou que não queria transformar os personagens em versões de carne e osso. Algo que, invariavelmente, descaracterizaria de forma desastrosa a criação do belga. É nesse ponto que a parceria entre o diretor americano com o neozelandês Peter Jackson se fez tão importante.
Assumindo a posição de produtor do longa, Jackson foi peça fundamental para o sucesso técnico de Tintim. A Weta, empresa de efeitos especiais da qual ele é sócio, e que foi responsável, claro, pelo êxito na adaptação de O Senhor dos Anéis ao cinema, construiu toda a plasticidade do novo filme de Spielberg e conseguiu captar de forma indefectível a ambientação dos quadrinhos de Hergé. Jackson contou com seu parceiro habitual Andy Serkis (o Smeagol da saga dos anéis) para dar corpo e voz ao Capitão Haddock, companheiro habitual de Tintim. Na voz e captação dos movimentos do jovem jornalista está Jamie Bell, uma escolha mais do que eficaz.
Tintim (Jamie Bell) e Capitão Haddock (Andy Serkis): adaptação fiel |
A trama deste As Aventuras de Tintim – O Segredo do Licorne, escrita por Edgar Wright (responsável por Chumbo Grosso e Scott Pilgrim), Steven Moffat (da série Sherlock) e Joe Cornish (do divertido Ataque ao Prédio), consegue apresentar Tintim de modo eficiente aos não iniciados nos quadrinhos de Hergé e, ainda, não decepciona a expectativa dos fãs que esperaram um longo período para ver o jovem repórter nos cinemas. Logo em seu começo, percebe-se o teor de homenagem de Spielberg ao original impresso. A aventura já começa nos créditos iniciais, que traz Tintim junto com seu inseparável cãozinho Milou, fugindo de diversos perigos enquanto os nomes são apresentados na tela. Remetendo à abertura do seu Prenda-me se for capaz, Spielberg teve bom senso ao conter os impulsos grandiloquentes de John Williams e entregou uma trilha sonora sutil que transparece de modo ideal o ambiente de espionagem dos quadrinhos.
A história capta bem a ideia de conspiração dos gibis. Tintim compra um navio em miniatura que é cobiçado por duas outras pessoas que vão se tornar cruciais no decorrer do filme. A primeira é o agente da Interpol Barnaby, que avisa ao rapaz que, se ele não se livrar logo da miniatura, correrá sérios riscos. A outra pessoa, esse realmente perigoso, é o Sr. Sakharine (Daniel Craig), que possui uma relação toda especial com aquele artefato. Óbvio que a veia de repórter de Tintim o impedirá de vender a peça. Decidido a investigar o navio, ele descobre que foi construído pelo Sir. Francis Haddock (ancestral do seu amigo, Capitão Haddock, que Tintim ainda vai conhecer), um capitão marítimo que deixou um segredo relacionado ao objeto.
Após danificar a miniatura, Tintim tem seu apartamento arrombado e o navio é levado. Na tentativa de recuperá-lo, o jornalista descobre as intenções de Sakharine em tê-lo para si, mas Tintim encontra em sua sala parte do mastro da réplica com um pergaminho escondido dentro dele – ambição real de Sakharine . Com a pista em mãos, o herói passa a investigar o enigma em uma história com momentos em alto mar, voando em um bimotor ou em alta velocidade pelas ruas do Marrocos. Além de Haddock, outros personagens clássicos do universo de Hergé se fazem presentes, como os policiais gêmeos Dupont e Dupond, cujas vozes e trejeitos da dupla Simon Pegg e Nick Frost (parceiros habituais do roteirista Edgar Wright) os tornam ainda mais hilários que nos quadrinhos ou na versão animada do começo da década de 90.
Tintim e os policiais Dupont e Dupond |
As sequências de ação de Tintim são bem construídas e segue de modo pertinente a estrutura das histórias em quadrinhos de onde se originaram, onde o inverossímil é tratado de forma natural e é necessário manter a suspensão da descrença sempre no modo on. Não que isso seja um problema, afinal, é uma animação que toma a liberdade de utilizar a típica narrativa dos gibis de modo, justamente, livre, sem as amarras que filmes em live action poderiam, em alguns casos, exigir. No entanto, há momentos onde o fator verossímil é incluído de modo a manter o filme fiel à realidade, como quando os personagens brincam com a gravidade zero dentro de um avião em queda. No entanto, logo em seguida, um arroto alcoolizado (!?) no tanque de combustível faz a aeronave se manter no ar por mais alguns segundos.
Os diversos planos-sequência utilizado por Spielberg durante as cenas de ação conferem um vigor que, junto com a já citada trilha sonora de Williams, criam a atmosfera exata da transposição das histórias de Tintim para o cinema. Feito com intenções claras de homenagear Hergé (observe o próprio desenho que Tintim exibe na primeira cena do filme), o filme acaba, mesmo mantendo uma fidelidade sensível à sua fonte, criando uma identidade própria que faz jus à nova mídia que o personagem experimenta pela primeira vez.
Apesar de lançado como um filme infantil, o longa possui elementos que o descaracterizam desse tipo de apelo, como o fato do herói portar uma arma e, em algumas cenas, personagens serem alvejados por metralhadoras (como uma especifica no começo, passada no hall de entrada do apartamento de Tintim). Não que isso seja um problema, ressalto. Reflete bem a postura de Spielberg em se manter fiel ao original de Hergé. Convém lembrar que foi o próprio diretor americano que relançou seu clássico E.T., há dez anos, substituindo escopetas por walk-talks com a desculpa de não chocar as crianças, numa vergonhosa demonstração do comportamento conservador que chega com a idade. Ainda bem que não foi o caso agora.
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