Em Salvador para divulgar seu
mais novo longa, À Beira do Caminho, dirigido
pelo mesmo Breno Silveira do sucesso 2
Filhos de Francisco, João Miguel conversou com o Película Virtual sobre a
amargura do seu personagem caminhoneiro nesse trabalho e sobre como foi
contracenar com o jovem Vinicius Nascimento. Visivelmente ansioso por poder
rever os familiares (“Vamos lá, rapaz, vamos lá que minha família tá aí e não é
sempre que eu posso vir a Salvador, não”, disse ele entre risos enquanto eu
passava de uma pergunta para outra) e esbanjando simpatia, o ator, que é um dos
rostos mais representativos do atual cinema brasileiro, falou, também, sobre a
dificuldade da produção nacional e sobre seu método de escolha de personagens.
Ao final, foi fácil perceber a razão do sucesso desse profissional que já trabalhou
como artista de rua e hoje encabeça diversas produções brasileiras: dedicação. Sempre.
João, o teu personagem no filme é um cara taciturno, amargurado,
calado. Alguém cuja trajetória traumática
acaba refletindo em seu modo de vida. Qual foi o modo de identificação que você
buscou para construir o João de À Beira
do Caminho?
Cara, eu sempre faço um
personagem com a premissa de que eu vou me apaixonar por ele, sabe? Eu sempre
acho que vou me apaixonar por ele no processo de filmagem e de criação. Então,
eu vou criando possibilidades de que essa paixão se dê tanto de mim comigo mesmo, quanto de mim para com meus companheiros de cena. Esse filme acabou
se desdobrando em todos esses sentidos. Com o João, eu tentava buscar sempre
esse âmago da dor, da perda. Por sinal, durante o processo de gravação, eu
havia perdido uma pessoa muito importante, um mestre meu, o Sotigui Kouyaté (diretor, poeta e ator malinês falecido em
2010). Foi na ocasião das gravações que eu recebi a notícia da perda dele.
Então, acabou havendo uma mescla uma vez que meu personagem também sofre dessa
dor.
E ela acabou refletindo em sua
composição e na interação com o garoto Vinicius Nascimento?
Sim. A maneira que eu tive de expurgar esse
sofrimento foi trabalhando no papel e contracenando com um ator maravilhoso
como o Vinicius. Eu pude me entregar a ele. A partir disso, você percebe como
vale a pena ser generoso em cena. É um lugar sagrado onde os homens se
encontram. Perceber o quanto é gratificante ser generoso em cena é muito bom. É
importante ser generoso porque quem vai ganhar é a cena, o encontro. É preciso
que exista alguma coisa que vá além do previsível. Eu não faço nenhum personagem
que tenha uma fórmula pronta e nenhum filme que diga "isso vai ser um sucesso".
Pelo contrário. O desáfio de não saber é que me interessa. Eu não chego pronto
para fazer um personagem. O João é muito tocado pelo Duda. Pela morosidade do
olhar desse menino que consegue amolecer o coração desse cara ao ponto dele
reabrir as portas da memória que estavam fechadas e ir adiante na estrada para,
por sua vez, tentar abrir portas para esse menino. Então, são dois homens
comuns, dois fudidos (risos) como eu mesmo falo em certo momento. Ao final,
eles conseguem criar uma saída para eles. E essa saída é a partir do afeto, a
partir da crença do amor, a partir do encontro do outro. Para mim, é uma
história que diz respeito a nós todos, a você, a mim, a todo mundo que é
normal.
Há, realmente, um ponto que coincide nessa
relação do seu personagem com as pessoas comuns. E já começa desde o nome,
“João”. Seu nome é João, o personagem também chama-se João. Acaba sendo um nome
tão comum nos brasileiros que a identificação fica ainda mais forte.
Sem dúvida.
E o nome do personagem já existia, o que tornou isso algo ainda mais bonito,
mais bacana. Porque o João é muito diferente de mim, mas é através de você
mesmo que se cria o personagem. Então, era lindo isso. Esse João estar presente
o tempo todo. O Duda me chamando de João o tempo todo. Usando meu próprio nome
civil e ecoando ali de um outro jeito naquela figura taciturna, como você mesmo
falou, e fechado para o mundo. A vida te surpreende. Vale a pena seguir em
frente. Não precisa ficar fechado nesse mundo. E é isso que acontece com o
João.
Pode-se dizer que você ensinou alguma coisa
ao Vinicius? O que você poderia dizer que aprendeu com ele?
Não, eu
não ensinei nada a ele. Eu me dei para ele em cena e ele se entregou em dobro
para mim. A intensidade de nossa representação me faz perceber isso. Eu aprendi
com ele e ele comigo. O fato de talvez eu ter mais experiência, claro, acabava
fazendo com que eu o pegasse no contra tempo, sabe? Mas ele me deu um olhar
completamente sincero a partir do olhar que eu o concedia. Então, havia uma
troca, sabe? Assim eu vejo o jogo de interpretação. Uma troca entre pessoas. Um
encontro entre pessoas. E isso me interessa profundamente. Em um mundo onde as
coisas são profundamente catalogadas, onde existe essa tendência da catalogação
em tudo, as pessoas tendem a te rotular. A gente vive hoje um momento de
incomunicabilidade no mundo. As pessoas vivem uma solidão muito grande e me
interessa falar dessas coisas em um filme com o À Beira do Caminho para que eu consiga transcendê-las. Você sai transformado depois de uma filmagem
dessas. Você sai dizendo que vale a pena ser generoso em cena pelo fato de ter
podido receber e compartilhar coisas boas.
É perceptível nos seus filmes que há uma escolha de papéis baseada não
apenas na visibilidade que aquele filme vai trazer para sua carreira. Você
costuma escolher papéis cujo desafio sobrepõe a visibilidade na mídia. Pode-se
dizer isso de seu René Descartes, em Ex
Isto, do Raimundo Nonato em Estômago
e até mesmo do Cláudio Vilas Bôas, em Xingu.
E mesmo com uma notoriedade televisiva, você ainda procura trabalhos de maior
profundidade. Pode-se dizer que em sua carreira o foco é o personagem em si, e
não a publicidade que ele vai te trazer?
Sem dúvida. Eu nunca escolho um
papel pensando nisso, pensando na fama e exposição na mídia que ele vai me
conceder. Se isso acontecer, será consequência da busca por um personagem que,
antes de qualquer coisa, eu tenha me apaixonado por ele. E que me permita
entrar em um processo de busca, de procura. Isso me interessa. Não me interessam as respostas. O que me interessa são as perguntas que eu possa fazer em relação
a ele. As perguntas em movimento, sempre! Não por acaso, eu faço vários filmes
que são road movies. Vários filmes
nos quais os personagens vão se transformando, homens comuns que vão se
transformando, sabe? O que me interessa sempre é dialogar com o inconsciente de
meu país. Interessa-me conhecer o meu país e as pessoas que vivem nele. E a
gente tem uma variedade enorme de pessoas. Basta se deslocar que se percebe
isso.
Exato. Isso é perceptível em filmes como Cinema, Aspirinas e Urubus e Xingu.
Pois é. Xingu é a história de três irmãos burgueses, paulistanos, que se
entregam a um ideal que diz respeito à nossa matriz, ao que nós somos. Até hoje
as pessoas negam isso. Nós fomos educados para negar a nossa origem indígena.
Isso que aconteceu é uma calamidade. Nós somos indígenas em um nível absurdo.
Então, há várias coisas na atuação que me interessam continuar buscando. Não é
necessário buscar uma fórmula para o sucesso. Se por acaso acontecer de haver
uma resposta positiva do público, claro, isso é uma consequência. Se for como
aconteceu com o Belarmino (personagem de João Miguel na novela global Cordel
Encantado), que o público gostou e abraçou, isso significa que eu
estou conectado a ele. É bom quando isso acontece, mas não quer dizer que você
vai estar sempre conectado a esse público. Essa conexão permanecerá a partir do
momento em que você continua procurando, continua buscando. E isso eu espero
nunca perder. Espero nunca perder essa paixão.
Recentemente, eu li uma entrevista do Fernando Meirelles na qual ele falou
sobre as dificuldades de ter o retorno investido em filmes como Xingu (cuja produção foi do cineasta
diretor de Cidade de Deus). Há alguns
dias, uma polêmica foi gerada com seu colega de cena em Xingu, o ator Caio Blat, que falou das dificuldades de produzir sem
estar ligado a Globo Filmes. Para você, o que poderia mudar no âmbito da
produção nacional para que o mercado cinematográfico brasileiro fosse mais
justo?
Há muitas pessoas preocupadas com
esse âmbito da produção cultural no Brasil. Eu, inclusive, sou testemunha de
uma tendência de querer viabilizar as produções brasileiras para o público
daqui. Há filmes que estão sendo feitos no Brasil que são de uma pluralidade
interessantíssima. A gente não tem um único tipo de cinema produzido aqui. O
problema é que não tornam viável o acesso do público às salas. Há questões
técnicas em relação à política cultural e à distribuição que necessitam de uma
resolução urgente. A política de distribuição dos filmes nacionais é muito
injusta de um modo geral. O realizador tem que disputar espaço com blockbusters americanos, necessitando
competir em uma bilheteria que é de um risco profundo para quem investe nas
produções. Eu entendo o que o Meirelles fala como produtor, e até disse isso a
ele, mas eu acho que o Xingu, mesmo
tendo um público abaixo do esperado pelos produtores, foi um sucesso. Porque,
na verdade, existe um problema cultural, uma vez que o público não queria ver
nada sobre índios. Mas o filme acabou sendo visto por pessoas que passaram a
admirá-lo profundamente.
Além do produtor ter que disputar espaço com blockbusters, o acesso às salas é algo muito caro no Brasil.
Sem dúvida. A partir do momento
que existir essa viabilidade do público poder pagar menos, as coisas podem ter
uma resposta. Cinema é algo muito caro para a população geral. Para uma família
ir a um cinema, uma classe C e D, por exemplo, é algo muito caro. Então, isso
tem que ser mudado para que se permita um maior acesso às salas de cinema. Mas,
claro, eu não acho que o Fernando esteja errado no ponto de vista dele em
relação ao que ele esperava que fosse o resultado do filme. Afinal, ele se
dedicou a um trabalho cujo resultado final ficou muito bom e ele queria que o
público comparecesse. A questão é que deve haver uma política cultural mais
ampla, que permita que a população possa assistir as produções que estão sendo
feitas e tirar suas opiniões, afinal, a pluralidade está presente nesses trabalhos.
Ou seja, haverá uma identificação.
Ator talentoso, um dos mais competentes atualmente.
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